NEXO 13. RUA CHILE, SALVADOR. GRAVITANDO EM MEMÓRIAS
A Rua Chile foi o ponto de partida para o exercício através do qual se manifestariam as imagens para compor um Atlas, baseado na técnica de montagem do historiador alemão Aby Warburg. Outro ponto de partida foi a questão elaborada por Walter Benjamin no ensaio Experiência e Pobreza (1933): “Pois qual o valor do nosso patrimônio cultural se a experiência não o vincula mais a nós?”. A Chile é um dos pontos importantes do campo de pesquisa em meu projeto para dissertação neste Mestrado. As diferentes épocas que a frequentei – há quase 40 anos – traçam em paralelo um pedaço em comum da vida contemporânea na virada do século XX para o XXI em Salvador. Mantendo a rua Chile como força gravitacional, dilatei o período e o local desta coexistência para acessar mais profundamente em minha memória, as imagens que abririam outras possibilidades de enriquecer as associações que foram estudadas no Altas gerado neste estudo o NEXO 13, que foi a décima terceira tentativa de um número incerto de montagens simuladas e observadas.
Esta curiosa rua do Centro Histórico de Salvador, inaugurada em 1902 com desfile de militares chilenos, já existia com o nome de rua Direita do Palácio – que não tem rua esquerda. Durante muito tempo, minha memória da Chile foi a Casa Sloper onde minha vó, seduzida por um certo charme que eu era mestre em encenar, comprava umas pulseirinhas e umas fivelinhas de cabelo para mim. Adolescente, foi na Chile que fiquei por alguns dias ensaiando a compra de um disco do grupo de rock Queen, sem concluir a performance. Foi também, onde pela primeira vez fui ao cinema sozinha, no Guarani. Adulta, as idas seguem tantas e tão diversas que não cabem em poucas memórias. Assim, vasculhando-as, me lancei ao exercício de montagem.
PARTÍCULAS
Estou:
em casa
na rua
dentro
fora
outro
limpo
morto.
Estou Estado, keeping well, I am a human being.
Brevemente: Os condenados da natureza e da arte em fotos 3x4 colecionáveis.
Antônio, pinto baleiro dialma santos, mas Osmário…. somente na parte de baixo.
Ciclo:
6 dias
7 dias
Ciclo vazio.
Sinto vazio em cores quentes.
Somente na parte de fora.
Promete-se discrição do começo ao fim e com perfeição de análise para fregueses fiéis.
身
ィ本
SUBSTÂNCIAS
Viajante inglês, 1902, Salvador. Período: Velha República. Escravos libertos, são souvenir turístico em postal para Barry em Gales do Sul – Inglaterra, cidade portuária e então, maior exportadora de carvão do mundo. Picador de carvão foi o primeiro ofício do pintor Clóvis Graciano, depois foi pintor de anúncios comerciais na rua, carroças, postes e placas, que são elementos recorrentes nas fotografias de rua de Hildegard Rosenthal. Graciano em sua fase madura se dedicaria a pintar a leveza do corpo em movimento e sua força expressiva, como no Butô de Yoshito Ohno.
Chapéu: de trabalho; de nobre; fora do manequim adequado para o cavalheiro.
Cavalheiro: fora do padrão físico; fora do padrão sábio; fora do padrão de cor.
Preconceitos.
No período vitoriano (1837-1901) em que viveu o “Homem elefante”, a Inglaterra produzia dois terços do carvão do mundo e era o lugar do puritanismo, da disciplina, do hábitos refinados e da dupla moral: dos jogos, das drogas, das orgias, dos bordéis, das noites secretas. Tirando da noite o “secretas” e toda a hipocrisia, o lado junkie desta moral pode estar na personificação moderna, meteórica e divertida de certo tipo underground vitoriano: Rê Bordosa (1984-1987), personagem do cartunista Angeli que, em crise, cria um alter ego que tenta explicar ao leitor suas atitudes inexplicáveis criando paródias de si, como também o faziam os modernistas de 1922: de si e do mundo intelectual, com refinado humor sarcástico.
Sobre nossa junkie vitoriana um detalhe: ainda que saibamos de sua vida mais que ela mesma, não conhecemos seu ciclo menstrual, em nenhum dos quadrinhos. Situação que se inverte no conteúdo do meu diário escrito entre os anos de 1981 e 1983. Lá estão a cada mês: o dia de chegada e partida do ciclo menstrual e algumas poucas revelações secretas de minha vida quase monástica de então. Nesta época eu já tinha meus ídolos do cinema, da música e do futebol. Fora os programas de videoclipe na TV, sabia não ter chance de ver ao vivo um artista como David Bowie, que me levou equivocadamente ao cinema para assistir o Homem Elefante, que ele interpretou no teatro.
Eu gostava de escrever desde pequena. Em 1972 com 5 anos comecei a ser alfabetizada. Gostava de desenhar letras. Tinha várias letras. Desenhava alfabetos. Meu caderno de escola parecia ser de vários estudantes que usavam o mesmo caderno. Em 1972 Clériston Andrade era o prefeito de Salvador, como não parei mais de desenhar desde então, fui parar na Faculdade de Arquitetura. No primeiro semestre na disciplina Desenho, o professor Jamison Pedra nos levou na Av. Garibaldi para desenhar o espinhoso monumento à memória do antigo prefeito.
Em 1946, morando em um cômodo no alto do Taboão em Salvador, Verger com sua moringa e caneca postas na pequena janela do seu quarto, sinalizava para os de fora as seguintes mensagens: “está em casa” ou “está na rua”. Verger um mestre da composição em preto e branco, veio de um universo bem diferente de Miguel Cordeiro, um mestre da composição em cores. Ambos olham para o mundo das pessoas comuns e, a partir de cruzamentos com seu próprio mundo, constroem suas obras com coerência artística. Adolescente e sem dinheiro, as lojas do Centro da cidade me intimidavam, mas os camelôs, ambulantes e pessoas na rua, me fascinavam e, ao que parece, a Verger e a Miguel também.
2008 foi centenário da imigração japonesa no Brasil. Em grande evento comemorativo em São Paulo é apresentado o espetáculo de Butô “Vazio”, em cujo cenário se lê: “Corpo, texto presente”. A abertura do Japão para o mundo ocidental tem como março o período histórico conhecido como Restauração Meiji (1896-1912), uma abertura motivada por condições socioeconômicas internas e geopolíticas externas, levando a uma aproximação de países ocidentais como a Inglaterra vitoriana de Joseph Merrick, amigo da rainha e que ficou conhecido na época pelas deformações que uma doença causaram a seu corpo desde criança. Corpo este que o faz presente nos tempos atuais pelos textos médicos e biográficos sobre sua curta vida de 27 anos.
Desde criança eu escrevo meio de cabeça para baixo e sempre ouço que escrevendo parecia japonês, pois meu texto ficava vertical. A luz, no vazio da câmera escura do fotografo lambe-lambe, também escreve de cabeça para baixo a imagem de seus clientes. Estes fotógrafos de praça e de estradas, se esmeravam para atender à sua clientela de poucos recursos. Alguns anunciavam de forma fanfarresca sua chegada em cidades do interior, que se dava de acordo com o calendário de festas religiosas e eventos sociais. Para as fotos, haviam cenários de personagens folclóricos a românticos como as personagens da obra modernista Natalika, de Guilherme de Almeida. Na frente da caixa fotográfica, estava um instante de alteridade, uma representação graciosa de um mundo possível só aos de posses, realizada por personagens reais de existência pouco visível na sociedade, mas acolhidos com paixão rebelde em os Condenados de Oswald de Andrade.
Guaraná espumante, a bebida favorita das crianças sábias!
***
Identificação das imagens:
Nota: No final do poema "PARTÍCULAS" é uma inscrição em japonês com a seguinte frase: “Corpo, texto presente” tradução livre baseada na imagem "KUU” (Vazio), espetáculo de Butô com o dançarino Yoshito Ohno. Foto: Pedro Imenes, díptico, 2008. TOKYOGAQUI: Um Japão Imaginado. Edições SESC, São Paulo. 2008. Págs. 240 e 241.
Índice de imagens do NEXO 13:
01 e 10) BAHIA. “Ladeira de São Bento”, 1902. Cartão postal. Disponível em: Um postal por dia – <https://umpostalpordia.wordpress.com/2012/08/27/bahia-ladeira-de-sao-bento-1902/ > Acesso em 12/06/2015
02) GRACIANO, Clóvis. Catálogo da Exposição Arte de Cavalete, São Paulo, 2014. “Homem velho”, s/d, pico de pena.
03) ROSENTHAL, Hildegard. Metrópole. Editora Instituto Moreira Salles, São Paulo, 2010. Pág. 57. “Meninas lendo um livro”, 1940, fotografia.
04) KLAXON Mensário de arte moderna, nº 2, 1922. “Contracapa”, s/identificação.
05) VERGER, Pierre. Retratos da Bahia. Editora Corrupio, Salvador, 1980. “Janela do quarto”, 1946, fotografia.
06) CORDEIRO, Miguel. Catálogo da Exposição Horizonte, Salvador, 2014. “s/título”, s/data.
07) ANGELI. Toda Rê Bordosa. Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2012. Pág. 198. “s/ título”, desenho.
08) KLAXON Mensário de arte moderna, nº 8 e 9, 1922. Pág. 34, “Aviso á Praça”, s/ identificação.
09 e 15) “KUU” (Vazio), espetáculo de Butô com o dançarino Yoshito Ohno. Foto: Pedro Imenes, díptico, 2008. TOKYOGAQUI: Um Japão Imaginado. Edições SESC, São Paulo. 2008. Págs. 240 e 241.
11) Cartaz do filme “O homem elefante” (em capa de DVD). Direção David Linch, 1980. Disponível em: <http://filmesresenhas.blogspot.com.br/2012/09/o-homem-elefante.html > Acesso em 11/06/2015.
12) Diário pessoal. Ano: 1981. Págs. 54 e 57.
13) Fotógrafo Lambe-Lambe: retratos do ofício em Belo Horizonte. Fundação Municipal de Cultura, Diretoria de Patrimônio Cultural. Belo Horizonte, 2011. Pág. 55, “Grupo de Lambe-lambes em Belo Horizonte em Festa de Jubileu”, s/d.
14) KLAXON Mensário de arte moderna, nº 3, 1922. Págs. 17 e 18, “Brevemente”, s/identificação.
16) PEDRA, Jamison. Tributo ao cotidiano. Fotografia. Ed. Kalango, 2010. “Eleição”, Salvador, 1971, fotografia.
BIBLIOGRAFIA
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política – Ensaio sobre literatura e história da cultura. Obras Escolhidas, Volume 1. Experiência e Pobreza (1933), p. 114-119. 3ª Edição. Editora Brasiliense, São Paulo, 1987.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Atlas - Como levar o mundo nas costas? Revista SOPRO, nº 41. p. 1-7, dezembro, 2010. Disponível em: <http://culturaebarbarie.org/sopro/n41pdf.html> Acesso em: 09/06/2015
SAMAIN, Etienne. As “Mnemosyne(s)” de Aby Warburg: Entre Antropologia, Imagens e Arte. Revista Poiésis nº 17, p. 29-51, julho, 2011. Disponível em: <http://www.uff.br/poiesis/index.php/17> Acesso em: 14/04/2015.
TARTÁS RUIZ, Cristina; GURIDI GARCIA, Rafael. Cartografías de la memoria. Aby Warburg y el Atlas Mnemosyne. EGA. Revista de expresión gráfica arquitectónica, [S.l.], n. 21, p. 226-235, setembro, 2013. ISSN 2254-6103. Disponível em: <http://polipapers.upv.es/index.php/EGA/article/view/1536>. Acesso em: 10/06/2015 <doi:http://dx.doi.org/10.4995/ega.2013.1536).
VERGER, Pierre. Retratos da Bahia. Ed. Corrupio, Salvador, 1980.
Outros:
Entrevista com Georges Didi-Huberman sobre Warburg e a exposição “Atlas, suite” no MAR – Museu de Arte do Rio. Publicada em: O Globo, 24/05/2013. Disponível em: <> http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/05/24/georges-didi-huberman-fala-sobre-warburg-exposicao-no-mar-497650.aspAcesso em: 08/06/2015.
Vídeos:
Atlas, Suite - Making of da montagem da exposição. Publicado em 03/06/2013, Canal no YouTube do Museu de Arte do Rio. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=TYeq2OMporo>. Acesso em: 18/06/2015
ATLAS. Entrevista con Georges Didi-Huberman. Publicado em 21/12/2010, Canal no YouTube do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WwVMni3b2Zo>. Acesso em: 14/04/2015
Atlas. How To Carry The World On One's Back. Publicado em 20/05/2011, Canal no VIMEO do Imaging Technologies’s Video. Disponível em: <https://vimeo.com/24023841>. Acesso em: 15/04/2015
Trabalho apresentado no semestre 2015.1 para a disciplina do mestrado em Urbanismo (PPGAU-UFBA): Memória, Narração e História.