COMO PENSAMOS O OUTRO PELA IMAGEM?
Autora: Solange Valladão
Arquiteta urbanista, doutoranda em Arquitetura, Conservação e Restauro
Este semana, conclui o curso "Imagem para pensar o Outro". É um curso livre, gratuito, de 20h, oferecido na modalidade EAD pelo portal Lúmina (1) da UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi elaborado pela doutora em Antropóloga Visual e professora de Antropologia da Saúde, Tatiana Engel Gerhardt. São quatro módulos e cada um tem o fórum de discussão sobre a questão colocada pela professora, em relação ao tema abordado. Os módulos são: I - O mito do bom selvagem; II - A imagem, instrumento de conhecimento do outro ou de interiorização de preconceitos?; III - Imagem e alteridade; IV - Caldo de cultura. Ao final fazemos uma avaliação para obter um atestado de que completamos o curso e do aproveitamento alcançado
Este tipo de curso é uma ótima forma de atualizar e aprofundar nossas reflexões, sobre este tema tão antigo quanto contemporâneo, que está circulando intensamente nos últimos anos, entre diversos meios de comunicação e rodas de conversa, geralmente de modo superficial e descontextualizado. No curso, a noção de Outro, se refere a pessoas de cultura e raça diferentes da que temos. Essa noção começa pelo encontro dos europeus com os povos dos lugares que estes invadiram para colonizar, como foi no Brasil. O que chega até nós sobre este encontro, são as versões dos colonizadores, transmitidas por imagens e narrativas que o registraram. Assim foi nos primeiros séculos.
Depois estes registros são incorporados nos livros didáticos que formaram gerações de brasileiros segundo essa versão, ainda presente, mesmo com alguns avanços que determinam a inclusão de narrativas dos povos negros que vieram para cá escravizados e dos povos indígenas que seguem perdendo seu território. Hoje é crescente o trabalho de pessoas descendentes destes povos para resgatar esta história e tentar descolonizar a nossa formação, aprimorando a nossa capacidade de alteridade e de reconhecimento de todo e qualquer Outro.
Neste contexto, pensar o Outro hoje é uma questão fundamental para enfrentar a crescente estigmatização e até criminalização, de qualquer Outro que não seja do círculo ideológico, religioso e dos valores e modelos sociais daqueles que, equivocadamente, se julgam no direto de não reconhecer o direito do Outro ser diferente, daquilo que julga como certo ou como normal. Esse tipo de julgamento é mais amplo, comum e contagioso do que a gente pode imaginar, ou do que já sabemos. Ele pode nos pegar desprevenidos ao acharmos que, sendo de boa fé - seja qual for a fé ou a boa índole aos que não professam alguma fé - podemos pensar sobre o Outro segundo o que achamos que este deveria ser, por ser melhor para ele.
Para trazer o assunto aqui, tendo o curso como guia, resolvi colocar as questões do fórum e as respostas que dei, agora de modo mais elaborado, para melhorar o entendimento para quem não fez o curso. Segue aqui como se fosse uma entrevista:
01: Se a perspectiva do índio fosse documentada em imagens, quais representações seriam possíveis sobre esse encontro?
Resposta:
Achei essa pergunta, por si só, fascinante, pois me obrigou a tentar ir a um lugar que não imaginava possível de existir: pensar como os povos indígenas (2) se expressariam em imagens, se eles registravam ou registram imagens, segundo sua cultura, de algum modo que possamos assim entender segundo a nossa.
Pensei qual seria, ou teria sido essa forma de documentação dos povos indígenas, que estavam à época da invasão colonizadora. Se isso existiu e se foi destruído sem chegar aos nossos dias. Ou se os povos indígenas que hoje encontramos teriam perdido esse elo de representação do Outro ou das experiências que vivenciaram, em algum tipo de imagem elaborada segundo sua cultura. Imagino, que se não era dado valor a vida dessas pessoas, nada podemos esperar sobre seus registros ou outras formas de expressão sobre o que viveram então.
Meu interesse por este curso foi fruto de esforço que tenho feito contra minha própria formação escolar, para me colocar na seguinte posição com relação ao Outro - aqui dos povos indígenas: o que eles são, é o que eles dizem que são, segundo sua própria forma de vida, valores, organização social, entendimento de si. Onde nosso repertório de leitura, interpretação, julgamento e até nossa linguagem, não cumpre nenhum papel com chance de ser minimamente justo, se não incluir isto. Não há em ambas culturas uma equivalência de ordem de estrutura social, além de sermos raça humana e de vivermos em sociedade. Portanto, há muito o que aprendermos mutuamente se, de nossa parte, dermos tempo e espaço para este aprendizado, respeitando a existência ou não, de uma reciprocidade neste interesse.
Respondendo a pergunta, acho que para este encontro eles não teriam imagens como as compreendemos. Entendo que a tradição oral dos povos indígenas é que cumpriu o papel de documentar essa impressão para a família, comunidade e futuras gerações. Eu não saberia imaginar como, e se isso chegou aos povos que hoje conhecemos, considerando a complexidade das culturas indígenas.
O sociólogo Laymert Garcia dos Santos escreveu um ensaio relatando uma experiência de elaboração de desenhos que foi realizada com os yanomami. Na década de 1970 a fotógrafa Cláudia Andujar, que há anos trabalha em defesa do território dos yanomani, resolveu levar papel e canetas de desenho "pedindo-lhes que expressassem através desse material, inédito para eles, seu mundo e seu entendimento do mundo. Como uma forma de comunicação". Sobre esses desenhos, Laymert diz o seguinte:
"Os yanomami desconheciam o desenho, pelo menos tal como o entendemos. Ou melhor, sua cultura contempla formas de expressão que implicam na concepção e execução de grafismos, como a pintura corporal e a ornamentação de cestos e de outros objetos. Mas, como observa o antropólogo Bruce Albert, que conhece profundamente a vida e o pensamento do povo yanomami, tais grafismos são considerados como traços, marcas, não como imagens. Além disso, eles se imprimem sobre corpos e objetos, portanto, sobre volumes, não sobre superfícies bidimensionais, como a folha de papel – o que, evidentemente, muda tudo."(3)
Com isso, o que imagino que poderia acontecer como registro desse encontro, é uma possível alteração da pintura corporal para se preparar para enfrentar um inimigo maior do que já haviam conhecido. Talvez eles buscassem em sua cultura, novos grafismos e cores que lhes trouxessem mais proteção e força. Mas se isso existiu em alguma das culturas indígenas, o corpo que foi o suporte dessa "imagem" não chegaria a nós.
02. Como podemos pensar a relação do uso da imagem no encontro com o Outro?
Resposta:
O encontro com o Outro precede a produção da imagem, não importa como ela seja produzida. Mesmo que seja um instantâneo, há um tempo de ver o Outro antes da imagem. É neste tempo que é acionado o que temos de repertório cultural e técnico para expressar esse Outro imageticamente. Portanto, o modo e a técnica com que o representamos, fala tanto de nós quanto do Outro. O momento que escolhemos para representá-lo, o ângulo, a expressão, o contexto em que o Outro está. Tudo isso mostra, a quem tiver acesso a essa imagem, tanto mais de como vemos o Outro, do que este realmente é.
Este ano, durante o Fórum Social Mundial, que aconteceu aqui em Salvador entre 13 e 17 de março, teve a exposição “Índios Korubo: Vale do Javari”, do fotógrafo Sebastião Salgado. Este trabalho foi realizado fotografando os korudo na floresta e também em um estúdio montado no território deste povo na selva (4). As imagens de estúdio receberam críticas por trazer uma idealização dos korudo como povo com pouco contato com a cultura dos brancos. Embora a intenção de Salgado tenha sido, no caso do estúdio, de fotografá-los segundo aquilo que eles ainda têm de original de sua cultura e segundo a forma como estes se orgulham de se mostrar. Ou seja, como este outro queria ser visto por aquele que o fotografava. Mas poderíamos questionar o quanto, neste caso, a montagem do estúdio e as poses que eles estão nessas imagens falam mais da visão que o fotógrafo quer dar desse Outro, do que este Outro quer dar de si. As duas coisas podem estar ali e se prestando a diferentes papéis e interpretações. De ambas as partes.
Outro projeto onde podemos acompanhar mais detalhadamente, como evoluiu o uso da imagem fotográfica para retratar o encontro com o Outro é "O índio na fotografia brasileira" (5), contemplado em 2012 com o Prêmio Marc Ferez de Fotografia. Ele aprofunda a discussão sobre este tema dentro de quatros eixos que, juntos "tem como objetivo traçar um panorama visual sobre a construção da imagem do índio ao longo da história da fotografia brasileira". Os eixos são: 1º eixo – O índio como um “tipo exótico” (século XIX); 2º eixo – Projetos de Nação: a Comissão Rondon e O Cruzeiro (anos 1900-1950); 3º eixo – Registros etnográficos e antropologia visual (anos 1880 até hoje); 4º eixo – Fotografia documentária e contemporânea (anos 1960 até hoje).
Tanto no projeto de Salgado como neste, mesmo com o propósito de mostrar a construção dessa imagem dos povos indígenas como um Outro igual a nós, e mesmo que seja dado nome a cada povo indígena fotografado, ainda vemos a denominação "índio" no título dos projetos. O que nos mostra o quanto é difícil escapar dela. Isso é especialmente relevante no segundo projeto, por se tratar de um trabalho premiado nacionalmente. Se precisamos de um nome para tratar de forma geral os povos indígenas, que nome seria este? Indígenas me parece. Então o nome do projeto poderia ser, sem problema algum de mudança de entendimento do seu objeto: "Indígenas na fotografia brasileira" como também poderia no ser reverso ser "Brasileiros na fotografia indígena", "Europeus na fotografia indígena" e assim por diante. E por que não apenas "Korubo: Vale do Javari"?
03. Quem vê, vê o quê? E como a alteridade ao longo do tempo produziu novas formas de olhar para o Outro?
Resposta:
Penso que, quem vê a imagem de um Outro (de outra cultura), vê a princípio o reflexo de sua própria cultura e dos valores que essa incutiu em sua forma de percepção das coisas. Mas este pode também ter desenvolvido uma visão mais empática sobre culturas não europeias ou norte-americanas, em contraponto a influência destes modelos de cultura com a qual foi educado. Isso, embora não seja comum em pessoas adultas é absolutamente normal em crianças que ainda não assimilaram a distinção do Outro de modo hierárquico ou cultural.
Pensar o Outro com valores de ordem hierárquica, faz com que nos coloquemos em uma posição de julgamento e classificação, segundo a imagem que alguém fez, provavelmente com os mesmo valores. Mas quem vê, pode também ver um ligação de alteridade com o Outro naquela imagem. Pode pensar em como e porque, se fez aquela imagem e daquela forma. Pode pensar: quem foi o Outro (fotógrafo, pintor, desenhista), para aquele que é um Outro para mim? E o que pensar sobre quem produziu essa imagem?
Estas perguntas, as possibilidades de aproximação com o Outro na imagem, e a posição crítica de que, também há para este um Outro, foram abertas pela evolução dos estudos da antropologia, etnologia e da crítica sobre a produção de imagens sobre o Outro. Mesmo assim, este assunto ainda suscita diversos debates e reflexões para chegarmos mais próximo de pensar e sentir o Outro como apenas um de nós.
04. Que imagens ajudam a descolonizar/desconstruir o pensamento hegemônico sobre o Outro em sociedades diversas?
Resposta:
São as imagens que, dentro do possível, dão oportunidade ao Outro de dizer o que gostaria de mostrar de si, ou de como gostaria de ser visto naquela imagem de si. Exemplo de imagens assim, foram produzidas pelo fotógrafo africano Malick Sidibé (6). São fotos feitas em um simples estúdio, onde as pessoas iam lá e se caracterizam para serem fotografadas como desejavam. Famílias, jovens, crianças, todos trazem para o estúdio uma expressão particular para aquele ritual de ser fotografado. Como ele fotografava pessoas também africanas, esta é uma forma de entendermos como essas pessoas gostariam de se expressar por imagens. Com trabalhos como este, podemos aprender como essas pessoas querem ser fotografadas sem posar como objeto da curiosidade ou da pesquisa de alguém.
05. O Trabalho Final do curso: "consiste na postagem de 1 (uma) imagem (fotografia, pintura, desenho, xilogravura, litografia, etc.) de sua autoria, com direitos de uso abertos a UFRGS, sobre o Outro e que sintetize os conteúdos abordados no curso para acessar as diversidades humanas e os usos dos territórios."
Resposta:
Abaixo, está a foto que enviei. Ela foi tirada em 2010 em um vilarejo próximo a cidade de Rio de Contas, na Chapada Diamantina, Bahia. Eu fotografava a casa da família da menina, pois ela seria beneficiada com a construção de uma nova casa oferecida por um programa habitacional do governo do Estado. A menina pediu para eu tirar uma foto dela e dos irmãos perto da árvore que eles tinham plantado. Tirei a foto de cada um sozinho e depois do grupo.
Gosto desta foto por essa espontaneidade e por ter sido fruto de um pedido dela. Sua expressão me parece mostrar essa relação de como quer ser vista junto a pequena árvore que plantou e que estava em época de dar flores. Depois imprimi as fotos e mandei para a família.
Notas:
1. Lúmina - UFRGS: <https://lumina.ufrgs.br>. Acesso em: 26/04/2018
2. Em uma entrevista o escritor indígena Daniel Munduruku, nos chama a atenção de que índio não existe, é invenção do homem branco. O que existe é cada povo indígena com sua própria denominação: Mundurucu, Yanomami, etc. Entrevista "Índio é invenção total, folclore puro": <http://atarde.uol.com.br/muito/noticias/1647828-indio-e-invencao-total-folclore-puro-premium>. Acesso em: 24/04/2018
3. Disponível em: <http://www.laymert.com.br/yanomami/>. Acesso em 21/04/2018.
4. Disponível em: <https://arte.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/sebastiao-salgado/medo/>. Acesso em: 26/04/2018
5. Disponível em: <http://povosindigenas.com>
6. Reportagem na revista ZUM sobre o estúdio de Malick Sidibé: <https://revistazum.com.br/revista-zum_6/estudio-malick/>. Acesso em: 25/04/2018.