TIPOS DE INTERVENÇÕES EM CENTROS HISTÓRICOS: UMA ANÁLISE ENTRE AS IDEIAS E OS RESULTADOS

 
1. Conceitos que nomeiam programas e acirram disputas
 
Os conceitos atribuídos às estratégias de intervenção em áreas centrais com patrimônio urbano, têm sido objeto de discussão e crítica desde as primeiras grandes intervenções do final do século XX, e colocam “o espaço como categoria central para a reflexão social” (RUBINO, 2009, p. 26). A que tipo de discurso se vinculam; do que procuram se diferenciar em relação a ações do passado; que imagem desejam imprimir a determinada ação, diante de uma competição internacional por destinos turísticos, polos de lazer, entretenimento e cultura, são algumas questões que atravessam esse debate. Nessas estratégias, os sítios históricos são entendidos como espaços urbanos capazes de atrair não apenas investidores, como também frequentadores e moradores com maior capacidade de consumo.
Este texto pretender estabelecer um ponto de partida para leitura e compreensão, sobre quais são os principais conceitos, como estes são usados discursivamente e como seu estudo nos permite: observar aspectos estratégicos e táticos de seu emprego nas políticas públicas, na projeção de tendências para o mercado imobiliário e para o turismo cultural em áreas centrais com patrimônio urbano; a maneira como os movimentos sociais, presentes nessas áreas, organizam discursos, elaboram ações de resistência e propostas de coexistência com a inevitável dinamização desses espaços, firmando, de um lado, seu direito à moradia e permanência e, de outro, o seu papel determinante na expressão cultural que esses espaços possuem.
Com esse intuito, o texto: começa com uma análise entre duas leituras realizadas por especialistas do campo das Ciências Sociais (no Brasil a socióloga Silvana Rubino e em Portugal o sociólogo Paulo Peixoto), sobre as estratégias de intervenção no patrimônio urbano e sua busca por resultados a partir dos conceitos que empregam. A opção por esse campo, buscar marcar a amplitude de disciplinas que onde esse debate tem sido realizado, para além da arquitetura e do urbanismo, aos quais estão mais diretamente vinculado; o texto segue com a análise de uma experiência brasileira (dos anos 2000) de formulação teórica realizada no âmbito institucional (governo federal) e voltada para a produção estratégica e pedagógica de cursos de capacitação, direcionados a quadros técnicos dentro e fora do governo, que seriam (ou poderão ser) responsáveis pela execução de programas públicos voltados para áreas centrais; e conclui com uma breve mostra de ações realizadas por movimentos sociais em Salvador e Lisboa na busca em se contrapor aos programas responsáveis pelo avanço do processo elitização das áreas centrais de valor histórico, ao tempo que articulam uma base igualmente multidisciplinar para enfrentar esse processo e propor alternativas.
A escolha de autores e movimentos sociais no Brasil e em Portugal para ilustrar o debate com o qual este texto busca contribuir, tem ligação com o fato de que, em Salvador, na Bahia e no Brasil, nos últimos anos os respectivos governos têm buscado parcerias técnicas e modelos de programas, ambos portugueses, na área do patrimônio e do turismo. Assim o fazem, abrindo mão da construção de políticas públicas para estas áreas, discutidas de forma participativa com os diversos setores sociais envolvidos, especialmente aqueles já afetados com as intervenções abrangentes ocorridas nos centros históricos desde o final do século XX, principalmente em relação a moradia para a população de baixa renda, situação esta que essas políticas devem aprofundar. Não é à toa que os lemas dos movimentos sociais, que mais cresceu, tanto no Brasil como em Portugal, durante a pandemia causada pelo Corona vírus, são: “Despejo Zero” (Brasil) e “Quarentena sem casa?” (Portugal).
 
2. Conceitos para intervenções em centro históricos
 
As experiências de reforma urbana em geral e aquelas voltadas aos centros históricos em particular, têm sido objeto de estudos, debates e análises críticas por autores de diferentes disciplinas (arquitetos, antropólogos, historiadores, cientistas sociais). O sociólogo Paulo Peixoto (Universidade de Coimbra, Portugal) em seu texto “Requalificação Urbana”, trás uma leitura crítica dos conceitos usados para tratar destas experiências.
Ao abordar conceitos como requalificação e reabilitação, que nomeiam as ações no espaço urbano (seja este patrimônio ou não), uma das primeiras observações de Peixoto é sobre o “uso acrítico” com que esses são empregados nos diversos meios que propagam discursos relacionados a esse tipo de ação, e sobre a “ambiguidade” de que se revestem. (PEIXOTO, 2009, p. 41). Ele considera que, o carácter mais técnico de ambos conceitos, teria um desempenho melhor em ocultar a carga política e mercadológica por trás dos discursos que as empregam. Contudo, sem perder a carga ambígua, estes conceitos são bastante usados no Brasil, vinculados a programas públicos, publicações especializadas editadas por órgãos e instituições públicas, destinadas a apresentação de programas, capacitação técnica e a veiculação publicitária de ações e resultados.
Em sua análise, ele ainda sobrepõe, mais que distingue, as expressões usadas para nomear as estratégias de intervenção urbana em áreas “antigas e centrais”, para as ações que se propõem a “conferir nova vida a zonas históricas”. O que ele situa como ações que estariam entre reabilitação e requalificação, em Salvador foi chamado de revitalização, e que deu nome ao Lei N.º 9.215/2017, que implanta o programa Revitalizar idealizado pela prefeitura municipal após uma polêmica aprovação na câmera de vereadores. Antes de sua aprovação, durante uma manifestação na câmera convocada pela Articulação dos Movimentos Centro Antigo, para exigir a retirada do programa da pauta de aprovação, em um cartaz se lia a frase “Não se revitaliza onde existe vidas. Queremos moradia digna para os moradores do Centro Antigo e não exclusão”.
Em 2005, no âmbito do Programa Nacional e Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais, o governo brasileiro definiu sua política de reabilitação urbana com o seguinte enunciado:
Reverter o processo de expansão urbana através do constante alargamento de suas fronteiras periféricas e ao mesmo tempo repovoar e dinamizar áreas centrais já consolidadas: isto contribui com o arrefecimento da segregação social e espacial e melhora as possibilidades de integração de diversas classes de renda à economia e à vida urbana. (Brasil, 2009, p. 10)
Hoje, as políticas voltadas para essa temática foram fragmentadas entre o Ministério do Desenvolvimento Regional – que assumiu as ações na linha do planejamento urbano – e o Ministério do Turismo – que acumulou as ações nas áreas voltadas para o turismo, cultura e patrimônio urbano, cultural, e ambiental. Desde 2019, no âmbito federal, as políticas para o patrimônio têm sido substituídas pelo modelo Revive, criado em Portugal. O Revive é um programa que, por princípio, entende o patrimônio como um “ativo estratégico” e, para “assegurar a sua preservação, a sua valorização e divulgação” promove a abertura do patrimônio urbano daquele país para a exploração de investidores privados em ações voltadas “para o desenvolvimento de projetos turísticos, através da concessão da sua exploração por concurso público”.1
Em Portugal, o programa surgiu numa ação conjunta entre os Ministérios da Economia, Cultura e Finanças, com o objetivo de “promover a requalificação e subsequente aproveitamento turístico de um conjunto de imóveis do Estado com valor arquitetónico, patrimonial, histórico e cultural” que, segundo o programa, não estariam sendo “devidamente usufruídos pela comunidade”. Este programa é fruto do Decreto-Lei nº 280/20071 (Portugal, de 7 de agosto de 2007), que estabeleceu “As disposições gerais e comuns sobre a gestão dos bens imóveis dos domínios públicos do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais; O regime jurídico da gestão dos bens imóveis do domínio privado do Estado e dos institutos públicos”. Esse decreto estabelece também “os deveres de coordenação de gestão patrimonial e de informação sobre bens imóveis dos sectores públicos administrativo e empresarial, designadamente para efeitos de inventário.”
Observando os termos do modelo Revive, se observa que, segundo Peixoto, é possível estabelecer que, a reabilitação urbana teria o foco no espaço construído com uso predominantemente residencial, abrangendo “operações urbanas de larga escala” (como as que são promovidas por este modelo), voltadas para a mudança funcional de uma área e seu entorno e a renovação urbana entraria visando a transformação mais ou menos radical de um do espaço. Isso se daria caso este não seja considerado (ou reconhecido) de “valor patrimonial”(PEIXOTO, 2009, p. 46), o que não acontece caso do programa Revive.
Nessa disputa pelos “res”, se sugere aqui o uso a palavrareforma”, empregada na arquitetura para tratar de qualquer tipo de intervenção em espaços preexistentes (arquitetônicos, urbanos). Assim, acredita-se que todas essas ações se tratam de reformas urbanas e que, cada uma, teria finalidades, objetivos e abrangências específicos. Para descrever qual o tipo, abrangência, objetivo e outras propriedades da reforma em questão, poderia-se, assim, fugir de expressões que tenham o “re” como prefixo. Isso fica mais evidente à medida que Peixoto apresenta no seu texto, outras expressões e seus significados como: revivificação, reordenamento e revitalização. Isso não se aplicaria a ações especializadas no âmbito da intervenção em edifícios históricos como: preservação, salvaguarda e conservação, que implicam em operações distintas e corresponderiam mais a um campo disciplinar voltado para formulações teóricas que dão suporte às estratégias de reforma.
Se Peixoto considera, por fim, que a reabilitação urbana é uma “prática ideológica”, pode-se, a partir dessa ideia, entender a estratégia política brasileira traçada pelo antigo Ministério das Cidades (vigente entre 2003 e 2019), para os programas relacionados a intervenções em áreas urbanas centrais. Em 2003 a então Secretaria Nacional de Programas Urbanos, presidida pela arquiteta urbanista Raquel Rolnik, criou o Programa Nacional de Reabilitação em Áreas Urbanas Centrais, coordenado pelo Ministério das Cidades e envolvendo os ministérios do Turismo, Cultura, Planejamento e Transportes.
Em uma publicação de 2005 voltada para a difusão do Programa, com o título “Reabilitação de Centro Urbanos” (essa publicação foi a terceira de uma série de três publicações voltadas para os programas do Ministério das Cidades, sendo as demais sobre Plano Diretor e Regularização Fundiária), a Secretaria demarcou sua definição do conceito “reabilitar”, ao tempo em que justifica sua adoção para nomear seu programa:
O uso do termo REABILITAR significa recompor atividades, habilitando novamente o espaço, através de políticas públicas e de incentivos às iniciativas privadas, para o exercício das múltiplas funções urbanas, historicamente localizadas numa mesma área da cidade, reconhecida por todos como uma centralidade e uma referência do desenvolvimento urbano. (BRASIL, 2005, p. 10)
No intuito de fomentar as estratégias adotadas em seus programas, o antigo Ministério das Cidades criou (em 2007) o Programa Nacional de Capacitação das Cidades2 que, através da plataforma Capacidades, promoveu seminários e cursos de formação técnica de agentes públicos e sociais. Entre os cursos regulares oferecidos estava o “Curso à distância de autoinstruçãoReabilitação Urbana com foco em Áreas Centrais”, que ocorreu anualmente entre os anos de 2011 e 2018 (chegando a ter seis turmas no ano de 2016).
No material didático produzido para este curso (que realizei em 2016, na Turna 3), assim como nas publicações referentes ao Programa Nacional de Reabilitação em Áreas Urbanas Centrais3, há um esforço em destrinchar e sistematizar os conceitos usados para tratar do tema. O curso começa fazendo uma classificação das áreas centrais tradicionais de acordo com os processos de transformação urbanas e dando um exemplo da cada:
  • Áreas centrais tradicionais sem interesse do mercado – zonas estagnadas onde houve perda de atividades econômicas com presença de edifícios degradados, sem conservação (exemplo: São Luiz – MA)
  • Áreas centrais tradicionais sob interesse do mercado de consumo de cultura – centros tradicionais, com presença de edifícios históricos, mas com crescimento estagnado, e que são objeto de crescente interesse do mercado imobiliário e turístico cultural, para promover processos de espetacularização desses locais (exemplo: Pelourinho, Salvador – BA).
  • Áreas centrais sob interesse do mercado de especulação da terra – locais com retenção de imóveis voltados para a especulação imobiliária e territorial, associados a um padrão de alta renda e a uma dinamização econômica que pressiona para um contínuo processo de reconstrução da paisagem, mas que ainda preserva, de forma isolada alguns edifícios históricos (Copacabana, Rio de Janeiro, RJ).
  • Áreas centrais setorizadas sob necessidade de readequação – neste tipo são consideradas áreas industriais e portuárias abandonadas que demandam a modernização de sua estrutura para adequação ao mercado (Área Portuária, Recife – PE)
  • Áreas tradicionais sob interesse do mercado para uso comercial – áreas que sofreram transformação das atividades econômicas, com crescimento desordenado da atividade comercial e consequente transferência de usos, principalmente, o residencial e com perdas significativas do patrimônio edificado (Av. 25 de Março, São Paulo – SP).
Os quadros 1 e 2 a seguir, fazem uma síntese desse material que apresenta importantes dados para o que este texto discute.

Quadro 1: Histórico das Ações de Intervenção Urbana no Brasil

  • Renovação Urbana
    • 1950 – 19701
    • Demolir para renovar implantando um novo padrão urbano
  • Preservação Urbana
    • 1970 – 1990
    • Interesse pela preservação dos centros urbanos buscando a integração entre preservação e planejamento urbano
  • Reinvenção Urbana
    • 1990 – atual
    • Introdução do planejamento estratégico como forma de modificar a escala e o foco das intervenções para um padrão de grandes empreendimentos
 Fonte: Curso de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais, Módulo I, Unidade 3: Reabilitação Urbana – Conceitos e Experiências. 2017

Quadro 2: Estratégias relacionadas a intervenções urbanas

  • Renovação Urbana
    • Demolição e substituição / modernização do espaço urbano, intensificação da ocupação do solo e da expulsão da população residente
    • A demolição do Morro do Castelo no Rio de Janeiro (década de 1920)
  • Revitalização Urbana
    • Retomar a vida econômica e social de uma parte da cidade vista como decadente, gerando atividades econômicas para atrair pessoas e trazer vida a uma área degradada.
    • Programa de Incentivo à Revitalização de Áreas Urbanas Degradadas (PRO-URBE), São Paulo (2007)
  • Requalificação Urbana
    • Promover melhores condições a uma área que também se encontre degradada. A qualificação do espaço é buscada por meio da integração da área às necessidades da vida contemporânea buscando aumentar a atratividade e competitividade.
    • Projeto Porto Maravilha, Rio de Janeiro (2010)
  • Conservação Integrada
    • Promove a conservação, restauração e reabilitação dos prédios e sítios antigos com o objetivo de torná-los utilizáveis para novas funções da vida moderna, buscando o desenvolvimento sustentável, harmonizando o espaço com os novos usos e funções.
    • Bolonha, Itália, na década de 1960.
  • Reabilitação Urbana
    • Estratégia de gestão urbana que, por meio de ações múltiplas e coordenadas, busca valorizar as potencialidades sociais, econômicas e funcionais, melhorando a qualidade de vida da população residente mantendo a identidade do lugar.
    • Plano de Reabilitação do Hipercentro de Belo Horizonte (2007)

Fonte: Curso de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais, Módulo I, Unidade 3: Reabilitação Urbana – Conceitos e Experiências. 2017

Ainda neste curso, após um breve levantamento das ações de intervenção urbana já realizadas no país foram realizadas breves avaliações críticas sobre seus resultados, considerando aspectos positivos e negativos. Entre os primeiros estão: o planejamento como ferramenta para políticas públicas voltadas para ações integradas no espaço urbano; a promoção da diversidade de usos; a intersetorialidade que buscou promover uma integração entre diversas áreas, ligando infraestrutura urbana com aspectos econômicos, moradia e lazer e, por fim, a busca da participação social como forma de legitimar as ações propostas.
Nos aspectos negativos estão: a maior ocorrência de intervenções pontuais desarticuladas de dinâmica urbana; a exclusão dos setores locais envolvidos (um paradoxo com relação ao que foi considerado como ponto positivo na participação social), tendo como consequência a falta de legitimidade junto a população afetada, assim como sua possibilidade de apropriação e integração aos programas; a gentrificação (que aqui considera-se como um dos efeitos da anterior) com a expulsão da população residente e alteração das funções originais da região; a especulação imobiliária como resultado das transformações impostas pelas intervenções, gerando lucro para o proprietário sem uma contrapartida para o bem comum, público e, por fim, a dependência financeira de capital estatal para a sustentação da dinâmica de fluxos atrativos e de consumo nas áreas reabilitadas.
Atento às expressões usadas nas estratégias de intervenção nos centro históricos, Peixoto chama a atenção para o fato de que, os discursos que essas ajudam a carregar são voltados, por um lado para a estigmatização dessas áreas e por outro para a promessa de que - seja qual for a terminologia adotada para se referir ao projeto de reforma proposto - ele dificilmente alcança o utópico regaste dos “tempos áureos” ou a efetividade de dinamização destes espaços, “querendo fazer dos centro históricos aquilo que nunca foram, numa lógica de sustentação de comunidades imaginadas [...] que apenas para um passado longínquo e harmonioso” (PEIXOTO, 2009, p. 50) ou para um futuro onde a chamada economia criativa, a tecnologia e o turismo, são, por si sós, a chave de todos os problemas. 
 
3. Conceitos para os efeitos das intervenções em centro históricos
 
Nesta análise o texto “Enobrecimento Urbano” de Silvana Rubino, é um ponto de partida para se ter um contraponto que mostre outra face das intervenções vistas na primeira parte, abordando seus efeitos, cujas denominações, também passam por um debate conceitual. A gentrificação, seria assim, um efeito em comum, que acorre mesmo nas intervenções preocupadas na manutenção da identidade do lugar, pois a progressiva valorização imobiliária e comercial resultante das intervenções, acabam por fazer o papel de inviabilizar a permanência de antigos moradores de menor renda e do comércio de padrão mais popular.
Rubino se refere a gentrificação5 como um termo que, inicialmente usado para explicar e descrever o processo de “transformação gradual de uma zona popular em região nobre” (RUBINO, 2009, p. 25), passou para a categoria de um “conceito analítico” com o qual se pode perceber os níveis e a abrangência dos efeitos das intervenções nos centro históricos. É nesse lugar de conceito analítico, que os diversos conceitos usadas para designar as intervenções voltadas para a reforma de lugares e de edifícios nos centros históricos, podem contribuir para observar os aspectos estratégicos e táticos (especialmente publicitário) por trás dos discursos de setores públicos e privados. Como também sua ressignificação ou contestação por parte dos setores sociais de baixa renda que, por tradicionalmente ocuparem essas áreas sofrem o efeito gentrificador do “combo”: áreas de valor histórico com ocupação de baixa renda + intervenção voltada para o mercado imobiliário e turístico cultural.
Este ano, no Brasil, em meio a pandemia causada pelo Corona vírus, diversas organizações sociais, movimentos populares, políticos e intelectuais (como Ermínia Caricato e Raquel Rolnik) e artistas populares, lançaram nacionalmente, em uma live na plataforma YouTube no dia 23 de julho, a Campanha Despejo Zero6. A live chamada “Despejo Zero – Pela Vida no Campo e na Cidade”, teve o forma de um “ato político-cultural pelo direito à moradia digna, à cidade e à vida”. Com quase duas horas e meia de duração, a live apresentou um breve panorama com depoimentos de lideranças de movimentos urbanos e rurais em situação de vulnerabilidade ou sob ameça de despejo.
No início de agosto, a Campanha lançou um formulário online7 com o objetivo deSistematizar processos de despejos e remoções durante a pandemia com a finalidade de subsidiar a Campanha Despejo Zero”. Segundo a conta da Campanha no Instagram8, o formulário deveria ser preenchido até o dia 12 de agosto, no intuito da Campanha usar “estes dados em atividades de incidência da Campanha Despejo Zero de enfrentamento aos despejos e remoções urbanos e rurais”, mas o mesmo segue ativo e sem uma data de encerramento. A Campanha segue firme organizando debates e articulando movimentos em rede nacional e internacional através de lives. O último debate realizado, pelo Instagram em 04 de setembro, teve a participação de representantes do Brasil, México, Itália, Estados Unidos da América, Índia, Espanha e África do Sul.
Participando ativamente desta Campanha está o movimento de Salvador, Articulação Centro Antigo9 que, também durante a pandemia, ampliou sua participação nas redes sociais ocupando as principais plataformas. No dia 24 de julho deste ano a Articulação abriu sua conta no Instagram10 para divulgação de suas atividades, especialmente focadas, neste momento, no “Ato Cortejo Virtual 2020”, uma grande programação que transferiu para o meio digital sua tradicional manifestação durante o cortejo que comemora a independência da Bahia, no dia 2 de Julho.
O Ato Cortejo11 teve uma programação ao vivo de mais de quatro horas de duração, sendo conduzido por representantes dos movimentos sócias e com intensa participação da comunidade, artistas e intelectuais ligados ao movimento. Além disso, como parte das atividades online depois do Ato Cortejo, teve uma série de dois debates transmitidos pelo canal da Articulação YouTube, com o tema “Direito à cidade, racismo e pandemia” e a Mostra Audiovisual “Se mostra Centro Antigo” que, entre 16 e 19 de julho, reuniu em uma Playlist no YouTube, uma importante coleção de 16 videodocumentários já produzidos sobre o Centro Antigo de Salvador entre os anos de 1998 (O avesso do Pelô, de Kau Rocha e Leonardo Leão) e 2020 (Balizando 2 de julho, de Fabíola Aquino).
Em Portugal, o movimento Morar Lisboa, que é um importante Plataforma Cidadã constituída por organizações sociais, profissionais, professores e cidadãos, e que atua desde 2017 sobre questões voltadas para políticas habitacionais, tem também, desde o início da pandemia (que lá foi antes daqui) ampliado sua atuação nas redes sócias, promovendo uma série de debates em seu canal no YouTube12, com o objetivo de abrir “uma série de debates dedicados às implicações do coronavirus para alguns dos setores mais vulneráveis da população e em diferentes âmbitos do direito à habitação.” O primeiro deles, foi em 01 de maio e teve como tema “Covid-19, imigrantes e o direito à habitação”
Observando essas ações dos Movimentos sociais retoma-se aqui o texto de Silvana Rubino para concluir esta análise. Nele, além de colocar os conceitos sob a ótica de uma categoria analítica, outra ideia que surge e que tem uma forte relação com esse breve panorama dos movimentos sociais visto acima, é a de ter “uma análise mais focada em bases etnográficas e dados qualitativos” (RUBINO, 2009, p. 28). Esse tipo de análise permite que se observe de modo não dualista as forças que atuam dentro das áreas centrais que são objeto de intervenção. Neste sentido, ferramentas de pesquisa de campo, oriundas Antropologia como a etnografia (citada por ela), poderiam ser usadas como forma de mapear um território social e sua dinâmica.
Outra ferramenta é a Análise de Redes (relações) Sociais que, segundo antropólogo Juan Pujadas, pode ser usada como estratégia metodológica e técnica analítica (2009, p. 110) e, para tal, ele parte de duas premissas: considera que as instituições não cobrem todo campo das relações sociais dentro de uma determinada estrutura social; os indivíduos conservam, à revelia das leis, alguns espaços de autonomia, sendo entre esses as relações interpessoais que os atores sociais adquirem ao longo de sua vida (PUJADAS, 2009, p. 112).
O uso da rede de relações sociais para análise institucional e de grupos sociais, se dá através de um diagrama que retrata uma determinada rede de relações, o qual possibilita identificar e mapear quais são atores sociais que atuam em determinada dinâmica; quais são suas relações, em que níveis e graus de interação essas se dão e como essa rede se articula direta e indiretamente em função de seus interesses individuais e coletivos.
A análise da rede se dá estabelecendo categorias analíticas que podem várias dentro de uma mesma rede mostrando resultados diferentes. Algumas categorias podem vir do que Rubino chamou de agentes de transformação socioespacial que pode se expandir para subcategorias como: gênero, etnia capital cultural, classe de idade, estilo de vida (RUBINO, 2009, p. 28). Essas ferramentas possibilitam cruzar dados sociais, estruturais e histórico-culturais que permitem traças as especificidades não só de cada contexto urbano onde incidem processos de intervenção urbana, como também dos diversos efeitos destas intervenções, com destaque para a análise da gentrificação das áreas centrais de valor histórico e cultural, ou para uma análise pós-ocupação, distinguir entre, por exemplo: enobrecimento e gentrificação, entre outros conceitos que buscam dar conta dos fenômenos urbanos, sociais, econômicos e culturais que afloram ao se intervir social e economicamente na preexistência.
Diferentemente de Rubino aqui se distingue intervenções e efeitos para alocar os conceitos trazidos nesta análise. Para tratar comparativamente dos conceitos usados para nomear programas, projetos e planos de intervenção, selecionou-se: revitalização, requalificação, reabilitação e renovação; para tratar dos efeitos dessas intervenções nas áreas afetadas: gentrificação, enobrecimento. Isso pode ser melhor distinto no discurso dos movimentos sociais que no discurso dos agentes da intervenção. em vários movimentos a expressão gentrificação é usada para tratar do efeito da intervenção de revitalização (Revitalizar onde há vida?) e seus pares conceituais. Em razão disso é que aqui se entende as intervenções nos centros históricos como ações de reformas às quais de pode atribuir distintos objetivos e efeitos e, ambos não seriam generalizáveis e sim estudados caso a caso.

REFERÊNCIAS
 
Brasil. Ministério das Cidades/ Agência Espanhola de Cooperação Internacional - AECI. Manual de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais. Coord. BALBIN, R.. Brasília: Ministério das Cidades; Agência Espanhola de Cooperação Internacional - AECI, 2008.
Brasil. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Programas Urbanos. Reabilitação de Centros Urbanos. Coord. ROLNIK, R; BALBIM, R. Brasília: Ministério das Cidades, 2005.
PEIXOTO, P. Requalificação urbana. In: FORTUNA, C; LEITE, R (org). Plural de cidade: léxicos e culturas urbanas. CES: Coimbra, 2009 (p. 41-52)
PUJADAS, Juan. Analises de las redes sociales. In: PUJADAS, J. (coord). Etnografia. Barcelona: Editorial UOC, 2010. p. 110-134
RUBINO, S. Enobrecimento urbano. In: FORTUNA, C; LEITE, R (org). Plural de cidade: léxicos e culturas urbanas. CES: Coimbra, 2009 (p. 25-40)

NOTAS
 
Fotos: Solange Valladão. Centro antigo de Salvador, 2019.

1Todos as informações sobre o Programa Revive têm como fonte a página do programa na internet. Endereço: da página https://revive.turismodeportugal.pt/pt-pt/guiao-tecnico

2O programa foi criado pela Portaria Nº 118, de 02 de abril de 2007, e revogado pela portaria nº 325 , de 17 de abril de 2017, que, na verdade, manteve o programa ampliando sua abrangência para “integrar as ações de capacitação das Secretarias Nacionais de Desenvolvimento Urbano, Habitação, de Saneamento Ambiental, de Mobilidade Urbana e Departamento Nacional de Trânsito”. Neste ano a plataforma Capacidades já promoveu 36 cursos à distância com temas variados. Segundo dados da plataforma, até o momento, o último curso oferecido foi: Curso à distância de autoinstrução Contratos de Desempenho: Gestão de Perdas de Água e Eficiência Energética - Turma 2/2020, Data: 03/08/2020 a 31/08/2020. Fonte: página na internet da plataforma Capacidades, endereço: http://www.capacidades.gov.br

3As principais publicações relacionadas ao programa foram: “Reabilitação de Centro Urbanos”, publicado em 2005, “Manual de Reabilitação em Área Urbanas Centrais”, publicado em 2008 e “Implementação de ações em áreas urbanas centrais e cidades históricas: manual de orientação / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e Ministério das Cidades”, publicado em 2011. Todas essas publicações estão disponíveis no portal Capacidades na aba “Biblioteca”, endereço: http://www.capacidades.gov.br/biblioteca.

4Em Salvador essa estratégia foi usada desde o início do século XX, quando iniciou um grande número de demolições em todo Centro Histórico. Desde o alargamento da rua Chile (1912), rua da Ajuda e abertura da Avenida Sete de Setembro (1915), passando pelo alargamento da Ladeira da Praça e Ladeira do Taboão (década de 1940), além da demolição completa de edifícios mais antigos como a Catedral da Sé (1933), a antiga Igreja da Ajuda (1912) e um importante conjunto arquitetônico no entorno na Praça Castro Alves (especialmente edifícios de hotéis entre a Ladeira da Montanha e a Ladeira de São Bento).

5Esse termo foi usado pela primeira vez pela socióloga Ruth Glass, em 1964 para nomear uma condição de transformação urbana onde o caráter social é, forçadamente, alterado. (RUBINO, 2009, p, 25)

6Despejo Zero - Pela Vida no Campo e na Cidade. Disponível em: <https://youtu.be/D4-in1ebFvA>. Acesso em: 23/07/2020

7Campanha DESPEJO ZERO. Endereço do formulário: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSfqul5ahra2XlmwHABr-at9kIrbhTkqq3vN_QZD1f2s32A3dw/viewform. Acesso em: 07/08/2020

8Campanha DESPEJO ZERO. Endereço no Instagram: https://www.instagram.com/campanhadespejozero

9A Articulação de Movimentos e Comunidades do Centro Antigo de Salvador, composta por: Associação Amigos de Gegê dos Moradores da Gamboa de Baixo, MSTB – Movimento Sem Teto da Bahia, Movimento Nosso Bairro É 2 de Julho, Artífices da Ladeira da Conceição da Praia, Coletivo da Vila Coração de Maria e Centro Cultural Que Ladeira É Essa.

10Articulação do Centro Antigo. Endereço no Instagram: https://www.instagram.com/centroantigovivo/

11Ato Cortejo Virtual 2020. Disponível em: <https://youtu.be/K_kNy5uL9vM>. Acesso em 02/07/2020

12Morar Lisboa. Endereço do canal no YouTube: https://www.youtube.com/channel/UCEM8pmCNnVl_OcURSrKZIqg/featured

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