1. Conceitos que nomeiam programas e acirram
disputas
Os conceitos
atribuídos às estratégias de
intervenção
em áreas centrais com patrimônio
urbano, têm
sido objeto
de discussão e crítica desde as
primeiras grandes intervenções do final
do século XX,
e
colocam
“o
espaço como categoria central para a reflexão social”
(RUBINO, 2009, p. 26). A que tipo
de discurso se vinculam; do que procuram se diferenciar em relação
a ações do passado; que imagem desejam imprimir a determinada ação,
diante de
uma competição internacional por
destinos turísticos, polos
de lazer, entretenimento e cultura, são
algumas questões
que atravessam esse debate. Nessas
estratégias, os sítios
históricos são entendidos
como espaços urbanos
capazes
de atrair não
apenas investidores, como também frequentadores e
moradores
com maior capacidade de consumo.
Este
texto pretender estabelecer um ponto de partida para leitura e
compreensão, sobre
quais são os
principais conceitos,
como estes
são
usados discursivamente
e
como
seu estudo nos permite:
observar
aspectos
estratégicos
e táticos
de
seu emprego nas políticas
públicas,
na
projeção de tendências
para o mercado imobiliário e para o
turismo
cultural em
áreas centrais
com
patrimônio urbano; a
maneira
como os movimentos
sociais, presentes nessas áreas,
organizam discursos, elaboram ações
de resistência e
propostas de
coexistência com a
inevitável dinamização desses espaços, firmando, de
um lado,
seu
direito à
moradia e permanência e, de outro, o seu
papel determinante na expressão cultural que esses
espaços
possuem.
Com
esse intuito, o texto: começa com uma análise entre duas leituras
realizadas por especialistas
do campo das Ciências Sociais (no Brasil a socióloga Silvana Rubino
e em Portugal o sociólogo Paulo Peixoto), sobre as estratégias de
intervenção
no patrimônio urbano e sua busca por resultados a partir dos
conceitos que empregam. A
opção por esse campo, buscar marcar a amplitude de disciplinas que
onde esse debate tem sido realizado, para além da
arquitetura
e
do urbanismo,
aos
quais estão
mais diretamente vinculado;
o
texto segue
com a análise de uma experiência brasileira
(dos anos 2000) de
formulação teórica realizada
no âmbito institucional (governo federal) e voltada
para a produção estratégica e pedagógica de cursos de
capacitação, direcionados a
quadros técnicos dentro e fora do governo, que seriam
(ou poderão ser) responsáveis pela
execução de programas públicos voltados para áreas centrais; e
conclui
com uma breve mostra de ações realizadas por movimentos sociais em
Salvador e Lisboa na
busca em
se contrapor aos programas responsáveis pelo avanço do processo
elitização das áreas centrais de valor histórico, ao tempo que
articulam uma base igualmente multidisciplinar
para enfrentar
esse processo e propor
alternativas.
A
escolha de autores e movimentos sociais
no
Brasil e
em Portugal
para
ilustrar o debate com o qual este texto busca contribuir, tem ligação
com o fato de que, em Salvador, na Bahia e no Brasil, nos
últimos anos
os
respectivos governos
têm buscado parcerias
técnicas
e
modelos de programas, ambos
portugueses,
na área do patrimônio e do turismo. Assim
o fazem,
abrindo mão
da construção de políticas públicas para estas
áreas,
discutidas de forma participativa com os diversos setores sociais
envolvidos, especialmente aqueles já afetados com as
intervenções abrangentes ocorridas nos centros
históricos desde o final do século XX, principalmente
em relação a moradia para a população de baixa renda,
situação
esta
que essas
políticas
devem
aprofundar. Não
é à toa que os
lemas
dos movimentos sociais, que mais cresceu, tanto no Brasil como em
Portugal, durante a pandemia causada pelo Corona vírus, são:
“Despejo Zero” (Brasil)
e “Quarentena sem casa?” (Portugal).
2. Conceitos
para intervenções em centro históricos
As
experiências de reforma urbana em geral e aquelas voltadas aos
centros históricos em particular, têm sido objeto de estudos,
debates e análises críticas por autores de diferentes disciplinas
(arquitetos, antropólogos, historiadores, cientistas sociais). O
sociólogo
Paulo Peixoto (Universidade de Coimbra, Portugal)
em
seu texto “Requalificação Urbana”, trás uma leitura crítica
dos conceitos usados para tratar destas
experiências.
Ao
abordar
conceitos como requalificação e reabilitação, que nomeiam as
ações no espaço urbano (seja este patrimônio ou não), uma das
primeiras observações de Peixoto é sobre o “uso
acrítico”
com que esses
são
empregados
nos
diversos meios que propagam discursos relacionados a esse tipo de
ação, e
sobre a
“ambiguidade”
de que se revestem. (PEIXOTO, 2009, p. 41). Ele
considera que, o carácter mais técnico de
ambos
conceitos, teria um desempenho melhor em ocultar a carga política e
mercadológica por trás dos discursos que as empregam. Contudo, sem
perder a carga ambígua, estes conceitos são bastante usados no
Brasil, vinculados a programas públicos, publicações
especializadas editadas por órgãos e instituições públicas,
destinadas
a apresentação de programas, capacitação técnica e a veiculação
publicitária de ações e resultados.
Em
sua análise, ele
ainda
sobrepõe, mais que distingue, as expressões usadas para nomear as
estratégias de intervenção urbana em áreas “antigas
e centrais”, para
as ações que se propõem a “conferir
nova vida a zonas históricas”. O
que
ele situa como ações que estariam
entre reabilitação e
requalificação, em
Salvador foi
chamado de revitalização, e
que
deu nome ao Lei N.º 9.215/2017, que implanta o programa Revitalizar
idealizado pela prefeitura municipal após
uma polêmica aprovação na câmera de vereadores.
Antes de sua aprovação, durante uma manifestação na câmera
convocada pela Articulação dos Movimentos Centro Antigo, para
exigir a retirada do programa da pauta de aprovação, em um cartaz
se lia a frase “Não se revitaliza onde existe vidas. Queremos
moradia digna para os moradores do Centro Antigo e não exclusão”.
Em
2005, no âmbito do Programa Nacional e Reabilitação de Áreas
Urbanas Centrais, o governo brasileiro definiu sua política de
reabilitação urbana com o seguinte enunciado:
Reverter o processo de expansão urbana
através do constante alargamento de suas fronteiras periféricas e
ao mesmo tempo repovoar e dinamizar áreas centrais já consolidadas:
isto contribui com o arrefecimento da segregação social e espacial
e melhora as possibilidades de integração de diversas classes de
renda à economia e à vida urbana. (Brasil, 2009, p. 10)
Hoje,
as políticas voltadas para essa temática foram fragmentadas entre o
Ministério do Desenvolvimento Regional – que assumiu as ações na
linha do planejamento urbano – e o Ministério do Turismo – que
acumulou as ações nas áreas voltadas para o turismo, cultura e
patrimônio urbano, cultural, e ambiental. Desde 2019, no âmbito
federal, as políticas para o patrimônio têm sido substituídas
pelo modelo Revive, criado em Portugal. O Revive é um programa
que, por princípio, entende o patrimônio como um “ativo
estratégico” e, para “assegurar a sua preservação, a sua
valorização e divulgação” promove a abertura do patrimônio
urbano daquele país para a exploração de investidores privados em
ações voltadas “para o desenvolvimento de projetos turísticos,
através da concessão da sua exploração por concurso público”.
Em
Portugal, o programa surgiu numa ação conjunta entre os Ministérios
da Economia, Cultura e Finanças, com o objetivo de “promover a
requalificação e subsequente aproveitamento turístico de um
conjunto de imóveis do Estado com valor arquitetónico, patrimonial,
histórico e cultural” que, segundo o programa, não estariam sendo
“devidamente
usufruídos pela comunidade”. Este programa é fruto
do Decreto-Lei nº 280/20071 (Portugal, de 7 de agosto de 2007), que
estabeleceu “As disposições gerais e comuns sobre a gestão dos
bens imóveis dos domínios públicos do Estado, das Regiões
Autónomas e das autarquias locais; O regime jurídico da gestão dos
bens imóveis do domínio privado do Estado e dos institutos
públicos”. Esse decreto estabelece também “os deveres de
coordenação de gestão patrimonial e de informação sobre bens
imóveis dos sectores públicos administrativo e empresarial,
designadamente para efeitos de inventário.”
Observando
os termos do modelo Revive, se observa que, segundo
Peixoto, é possível
estabelecer que, a reabilitação urbana teria o foco no espaço
construído
com uso predominantemente
residencial, abrangendo
“operações
urbanas de larga escala”
(como
as que são promovidas por este modelo), voltadas
para
a mudança funcional de uma área e seu entorno e a renovação
urbana
entraria
visando
a transformação mais ou menos radical de um do espaço. Isso
se daria caso
este
não seja
considerado (ou reconhecido) de “valor
patrimonial”(PEIXOTO,
2009, p. 46), o que não acontece caso do programa Revive.
Nessa
disputa pelos “res”, se
sugere aqui o uso
a
palavra
“reforma”,
empregada
na arquitetura para tratar de qualquer tipo de intervenção
em espaços preexistentes
(arquitetônicos, urbanos). Assim,
acredita-se
que todas essas ações se tratam de reformas urbanas e que, cada
uma, teria finalidades, objetivos e abrangências específicos. Para
descrever qual o tipo, abrangência, objetivo e outras propriedades
da reforma em questão, poderia-se,
assim, fugir de expressões que tenham o “re” como prefixo. Isso
fica mais evidente à medida que Peixoto apresenta no seu
texto, outras expressões e seus significados como: revivificação,
reordenamento e revitalização. Isso não se aplicaria a ações
especializadas no âmbito da intervenção
em edifícios históricos como: preservação, salvaguarda e
conservação, que implicam em operações distintas e
corresponderiam mais a um campo disciplinar voltado para formulações
teóricas que dão suporte às estratégias de reforma.
Se
Peixoto considera, por fim, que a reabilitação urbana é uma
“prática ideológica”, pode-se, a partir dessa ideia, entender a
estratégia política brasileira traçada pelo antigo Ministério das
Cidades (vigente entre 2003 e 2019), para os programas relacionados a
intervenções em áreas urbanas centrais. Em 2003 a então
Secretaria Nacional de Programas Urbanos, presidida pela arquiteta
urbanista Raquel Rolnik, criou o Programa Nacional de Reabilitação
em Áreas Urbanas Centrais, coordenado pelo Ministério das Cidades e
envolvendo os ministérios do Turismo, Cultura, Planejamento e
Transportes.
Em
uma publicação de 2005 voltada para a difusão do Programa, com o
título “Reabilitação de Centro Urbanos” (essa publicação foi
a terceira de uma série de três publicações voltadas para os
programas do Ministério das Cidades, sendo as demais sobre Plano
Diretor e Regularização Fundiária), a Secretaria demarcou sua
definição do conceito “reabilitar”, ao tempo em que justifica
sua adoção para nomear seu programa:
O uso do termo REABILITAR significa
recompor atividades, habilitando novamente o espaço, através de
políticas públicas e de incentivos às iniciativas privadas, para o
exercício das múltiplas funções urbanas, historicamente
localizadas numa mesma área da cidade, reconhecida por todos como
uma centralidade e uma referência do desenvolvimento urbano.
(BRASIL, 2005, p. 10)
No
intuito
de fomentar
as estratégias adotadas em
seus programas,
o antigo
Ministério
das Cidades criou (em
2007) o
Programa Nacional de Capacitação das Cidades
que, através da plataforma Capacidades, promoveu seminários e
cursos de formação técnica de
agentes públicos e sociais. Entre os cursos regulares oferecidos
estava o “Curso à
distância de
autoinstrução
– Reabilitação
Urbana com foco em Áreas Centrais”, que ocorreu anualmente
entre os anos de 2011 e 2018 (chegando
a ter seis turmas
no ano de 2016).
No
material didático produzido para este curso (que realizei em 2016,
na Turna 3),
assim como nas publicações referentes ao Programa Nacional de
Reabilitação em Áreas Urbanas Centrais,
há um esforço em destrinchar e
sistematizar os
conceitos usados para
tratar do tema. O
curso
começa fazendo uma classificação das áreas centrais tradicionais
de acordo com os processos de transformação urbanas e
dando
um exemplo da cada:
Áreas
centrais tradicionais sem interesse do mercado – zonas estagnadas
onde houve perda de atividades econômicas com presença de
edifícios degradados, sem conservação (exemplo: São Luiz – MA)
Áreas
centrais tradicionais sob interesse do mercado de consumo de cultura
– centros tradicionais, com presença de edifícios históricos,
mas com crescimento estagnado, e que são objeto de crescente
interesse do mercado imobiliário e turístico cultural, para
promover processos de espetacularização desses locais (exemplo:
Pelourinho, Salvador – BA).
Áreas
centrais sob interesse do mercado de especulação da terra –
locais com retenção de imóveis voltados para a especulação
imobiliária e territorial,
associados a um padrão
de alta renda e
a uma dinamização econômica que pressiona para um contínuo
processo de reconstrução da paisagem, mas que ainda preserva, de
forma isolada alguns edifícios históricos (Copacabana, Rio de
Janeiro, RJ).
Áreas
centrais setorizadas sob necessidade de readequação – neste tipo
são consideradas áreas industriais
e portuárias abandonadas que demandam a modernização de sua
estrutura para adequação ao mercado (Área Portuária, Recife –
PE)
Áreas
tradicionais sob interesse do mercado para uso comercial – áreas
que sofreram transformação das atividades econômicas, com
crescimento desordenado da atividade comercial e consequente
transferência de usos, principalmente, o residencial e com perdas
significativas do patrimônio edificado (Av. 25 de Março, São
Paulo – SP).
Os
quadros
1
e 2 a
seguir, fazem uma síntese desse material que apresenta importantes
dados para o que este texto discute.
Quadro 1: Histórico das Ações de Intervenção Urbana no Brasil
- Renovação Urbana
- 1950 – 19701
- Demolir para renovar
implantando um novo padrão urbano
- Preservação Urbana
-
1970 – 1990
- Interesse pela
preservação dos centros urbanos buscando a integração entre
preservação e planejamento urbano
- Reinvenção Urbana
- 1990 – atual
- Introdução do
planejamento estratégico como forma de modificar a escala e o foco
das intervenções para um padrão de grandes empreendimentos
Fonte: Curso
de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais, Módulo I, Unidade 3:
Reabilitação Urbana – Conceitos e Experiências. 2017
Quadro 2: Estratégias relacionadas a intervenções urbanas
- Renovação Urbana
- Demolição e
substituição / modernização do espaço urbano, intensificação
da ocupação do solo e da expulsão da população residente
- A demolição do
Morro do Castelo no Rio de Janeiro (década de 1920)
- Revitalização
Urbana
- Retomar a vida
econômica e social de uma parte da cidade vista como decadente,
gerando atividades econômicas para atrair pessoas e trazer vida a
uma área degradada.
- Programa de
Incentivo à Revitalização de Áreas Urbanas Degradadas (PRO-URBE),
São Paulo (2007)
- Requalificação
Urbana
- Promover melhores
condições a uma área que também se encontre degradada. A
qualificação do espaço é buscada por meio da integração da área
às necessidades da vida contemporânea buscando aumentar a
atratividade e competitividade.
- Projeto Porto
Maravilha, Rio de Janeiro (2010)
- Conservação
Integrada
- Promove a
conservação, restauração e reabilitação dos prédios e sítios
antigos com o objetivo de torná-los utilizáveis para novas funções
da vida moderna, buscando o desenvolvimento sustentável,
harmonizando o espaço com os novos usos e funções.
- Bolonha, Itália, na
década de 1960.
- Reabilitação
Urbana
- Estratégia de
gestão urbana que, por meio de ações múltiplas e coordenadas,
busca valorizar as potencialidades sociais, econômicas e funcionais,
melhorando a qualidade de vida da população residente mantendo a
identidade do lugar.
- Plano de
Reabilitação do Hipercentro de Belo Horizonte (2007)
Fonte: Curso
de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais, Módulo I, Unidade 3:
Reabilitação Urbana – Conceitos e Experiências. 2017
Ainda
neste curso, após um breve levantamento das ações de intervenção
urbana já realizadas no país foram realizadas breves avaliações
críticas sobre seus resultados, considerando aspectos positivos e
negativos. Entre os primeiros estão: o planejamento como ferramenta
para políticas públicas voltadas para ações integradas no espaço
urbano; a promoção da diversidade de usos; a intersetorialidade que
buscou promover uma integração entre diversas áreas, ligando
infraestrutura urbana com aspectos econômicos, moradia e lazer e,
por fim, a busca da participação social como forma de legitimar as
ações propostas.
Nos
aspectos negativos estão: a maior ocorrência de intervenções
pontuais desarticuladas de dinâmica urbana; a exclusão dos
setores
locais
envolvidos (um paradoxo com relação ao
que foi
considerado como ponto positivo na
participação social), tendo como consequência a falta de
legitimidade junto a população
afetada, assim como sua possibilidade de apropriação e integração
aos programas; a gentrificação (que aqui considera-se
como um dos efeitos da anterior) com
a expulsão da população residente e alteração das funções
originais da região; a especulação imobiliária como resultado das
transformações impostas pelas intervenções,
gerando lucro para o proprietário sem uma contrapartida para o bem
comum, público e, por fim, a dependência financeira de capital
estatal para a sustentação da dinâmica de fluxos atrativos e de
consumo nas áreas reabilitadas.
Atento
às expressões usadas nas estratégias de intervenção nos centro
históricos, Peixoto chama a atenção para o fato de que, os
discursos que essas ajudam a carregar são
voltados,
por um lado para a estigmatização dessas áreas e por
outro para a promessa de que - seja qual for a terminologia adotada
para se referir
ao projeto de reforma proposto - ele dificilmente alcança o utópico
regaste dos “tempos
áureos”
ou a efetividade de dinamização destes espaços, “querendo
fazer dos centro históricos aquilo que nunca foram, numa lógica de
sustentação de comunidades imaginadas [...] que apenas para um
passado longínquo e harmonioso”
(PEIXOTO, 2009, p. 50) ou para um futuro onde a chamada economia
criativa, a tecnologia e o turismo, são, por si sós, a chave de
todos os problemas.
3.
Conceitos
para
os
efeitos das intervenções
em
centro históricos
Nesta
análise o texto “Enobrecimento Urbano” de Silvana Rubino,
é
um ponto de partida para se ter um contraponto
que
mostre
outra face das intervenções
vistas na
primeira parte, abordando
seus efeitos, cujas
denominações,
também passam por um debate conceitual.
A gentrificação, seria assim, um efeito em comum, que acorre mesmo
nas intervenções
preocupadas na manutenção da identidade do lugar, pois a
progressiva
valorização imobiliária e comercial resultante das intervenções,
acabam
por fazer o papel de inviabilizar a permanência de antigos moradores
de menor renda e do comércio de padrão mais popular.
Rubino
se refere a gentrificação
como um termo que, inicialmente usado para explicar e descrever o
processo de “transformação gradual de uma zona popular em região
nobre” (RUBINO, 2009, p. 25), passou para a categoria de um
“conceito analítico” com o qual se pode perceber os níveis e a
abrangência dos efeitos das intervenções nos centro históricos. É
nesse lugar de conceito analítico, que os diversos conceitos usadas
para designar as intervenções voltadas para a reforma de lugares e
de edifícios nos centros históricos, podem contribuir para observar
os aspectos estratégicos e táticos (especialmente publicitário)
por trás dos discursos de setores públicos e privados. Como também
sua ressignificação ou contestação por parte dos setores sociais
de baixa renda que, por tradicionalmente ocuparem essas áreas sofrem
o efeito gentrificador do “combo”: áreas de valor histórico com
ocupação de baixa renda + intervenção voltada para o mercado
imobiliário e turístico cultural.
Este
ano, no Brasil, em meio a pandemia causada pelo Corona vírus,
diversas organizações sociais, movimentos populares, políticos e
intelectuais (como Ermínia Caricato e Raquel Rolnik) e artistas
populares, lançaram nacionalmente, em uma live na plataforma YouTube
no dia 23 de julho, a Campanha Despejo Zero.
A live chamada “Despejo Zero – Pela Vida no Campo e na Cidade”,
teve o forma de um “ato
político-cultural pelo direito à moradia digna, à cidade e à
vida”. Com
quase duas horas e meia de duração, a
live
apresentou um breve panorama
com depoimentos de lideranças de movimentos urbanos e rurais em
situação de vulnerabilidade ou sob ameça de despejo.
No
início de agosto,
a Campanha lançou um formulário online
com
o objetivo de
“Sistematizar
processos de despejos e remoções durante a pandemia com a
finalidade de subsidiar a Campanha Despejo Zero”. Segundo a conta
da Campanha no Instagram,
o
formulário deveria ser preenchido até o dia 12 de
agosto, no intuito da Campanha usar “estes dados em atividades de
incidência da Campanha Despejo Zero de enfrentamento aos despejos e
remoções urbanos e rurais”, mas o mesmo segue ativo e sem uma
data de encerramento. A Campanha segue firme organizando debates e
articulando movimentos em rede nacional e internacional através de
lives. O último debate realizado, pelo Instagram em 04 de setembro,
teve a participação de representantes do Brasil, México, Itália,
Estados Unidos da América, Índia, Espanha e África do Sul.
Participando
ativamente desta Campanha está o movimento de Salvador,
Articulação Centro Antigo
que,
também durante a pandemia, ampliou
sua
participação nas redes sociais ocupando as principais plataformas.
No dia 24 de julho deste
ano a Articulação abriu sua conta no Instagram
para
divulgação de suas atividades, especialmente focadas, neste
momento, no “Ato Cortejo Virtual 2020”, uma grande programação
que transferiu para o meio digital sua tradicional manifestação
durante o cortejo que comemora a independência da Bahia, no dia 2 de
Julho.
O
Ato Cortejo
teve uma
programação
ao vivo de mais de quatro horas de duração, sendo conduzido por
representantes dos movimentos sócias e
com intensa participação da comunidade, artistas
e intelectuais ligados ao movimento. Além
disso, como parte
das
atividades online depois do Ato Cortejo, teve uma série de dois
debates transmitidos pelo canal da Articulação YouTube, com o tema
“Direito à cidade, racismo e pandemia” e a Mostra Audiovisual
“Se mostra Centro Antigo” que, entre 16 e 19 de julho, reuniu em
uma Playlist no YouTube, uma importante coleção de 16
videodocumentários já produzidos sobre o Centro Antigo de Salvador
entre os anos de 1998 (O avesso do Pelô, de Kau Rocha e Leonardo
Leão) e 2020 (Balizando 2 de julho, de Fabíola Aquino).
Em
Portugal, o movimento Morar Lisboa, que
é um importante
Plataforma Cidadã constituída por organizações sociais,
profissionais, professores e cidadãos,
e
que atua desde 2017 sobre questões voltadas
para políticas habitacionais, tem
também, desde
o início da pandemia (que lá foi antes daqui) ampliado
sua atuação nas redes sócias, promovendo
uma série de debates em
seu canal no YouTube,
com o objetivo de abrir “uma série de debates dedicados às
implicações do coronavirus para alguns dos setores mais vulneráveis
da população e em diferentes âmbitos do direito à habitação.”
O primeiro deles, foi em 01 de maio e teve como tema “Covid-19,
imigrantes e o direito à habitação”
Observando
essas ações dos Movimentos sociais retoma-se aqui o texto de
Silvana Rubino para concluir esta análise. Nele, além
de colocar os conceitos sob a ótica de uma categoria analítica,
outra ideia que surge e
que tem uma forte relação com esse breve panorama dos movimentos
sociais
visto acima,
é a de ter “uma
análise mais focada em bases etnográficas e dados qualitativos”
(RUBINO, 2009, p. 28). Esse tipo de análise permite que se observe
de modo não dualista as forças que atuam dentro das áreas centrais
que são objeto de intervenção. Neste sentido, ferramentas de
pesquisa de campo, oriundas Antropologia como a etnografia (citada
por ela), poderiam ser usadas como forma de mapear um território
social e sua dinâmica.
Outra
ferramenta é a Análise de Redes (relações) Sociais que, segundo
antropólogo Juan Pujadas, pode ser usada como estratégia
metodológica e técnica analítica (2009, p. 110) e, para tal, ele
parte de duas premissas: considera que as instituições não cobrem
todo campo das relações sociais dentro de uma determinada estrutura
social; os indivíduos conservam, à revelia das leis, alguns espaços
de autonomia, sendo entre esses as relações interpessoais que os
atores sociais adquirem ao longo de sua vida (PUJADAS, 2009, p. 112).
O
uso da rede de relações sociais para análise institucional e de
grupos sociais, se dá através de um diagrama que retrata uma
determinada rede de relações, o qual possibilita identificar e
mapear quais são atores sociais que atuam em determinada dinâmica;
quais são suas relações, em que níveis e graus de interação
essas se dão e como essa rede se articula direta e indiretamente em
função de seus interesses individuais e coletivos.
A
análise da rede se dá estabelecendo
categorias analíticas que podem várias
dentro de uma mesma rede mostrando resultados diferentes. Algumas
categorias podem vir do que Rubino chamou de agentes de transformação
socioespacial
que pode se expandir para subcategorias
como: gênero,
etnia capital cultural, classe de idade, estilo de vida (RUBINO,
2009, p. 28). Essas ferramentas possibilitam
cruzar
dados sociais,
estruturais e histórico-culturais que permitem traças as
especificidades não só de cada contexto urbano onde incidem
processos de intervenção urbana, como também dos diversos efeitos
destas intervenções, com destaque para a análise da gentrificação
das áreas centrais de valor histórico
e
cultural, ou para uma análise pós-ocupação, distinguir
entre,
por exemplo: enobrecimento e gentrificação, entre outros conceitos
que buscam dar conta dos fenômenos urbanos, sociais, econômicos e
culturais que afloram ao se intervir social e economicamente na
preexistência.
Diferentemente
de Rubino aqui se distingue intervenções e efeitos para alocar os
conceitos trazidos nesta análise. Para tratar comparativamente dos
conceitos usados para nomear programas, projetos e planos de
intervenção, selecionou-se: revitalização, requalificação,
reabilitação e renovação; para tratar dos efeitos dessas
intervenções nas áreas afetadas: gentrificação, enobrecimento.
Isso pode ser melhor distinto no discurso dos movimentos sociais que
no discurso dos agentes da intervenção. em vários movimentos a
expressão gentrificação é usada para tratar do efeito da
intervenção de revitalização (Revitalizar onde há vida?) e seus
pares conceituais. Em razão disso é que aqui se entende as
intervenções nos centros históricos como ações de reformas às
quais de pode atribuir distintos objetivos e efeitos e, ambos não
seriam generalizáveis e sim estudados caso a caso.
REFERÊNCIAS
Brasil.
Ministério das Cidades/ Agência Espanhola de Cooperação
Internacional - AECI. Manual de Reabilitação de Áreas
Urbanas Centrais. Coord.
BALBIN, R.. Brasília: Ministério das Cidades; Agência Espanhola de
Cooperação Internacional - AECI, 2008.
Brasil.
Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Programas Urbanos.
Reabilitação de Centros Urbanos. Coord. ROLNIK, R; BALBIM,
R. Brasília: Ministério das Cidades, 2005.
PEIXOTO,
P. Requalificação urbana. In: FORTUNA, C; LEITE, R (org). Plural
de cidade: léxicos e culturas urbanas. CES: Coimbra, 2009 (p.
41-52)
PUJADAS,
Juan. Analises de las redes sociales. In: PUJADAS, J. (coord).
Etnografia. Barcelona: Editorial UOC, 2010. p. 110-134
RUBINO,
S. Enobrecimento urbano. In: FORTUNA, C; LEITE, R (org). Plural de
cidade: léxicos e culturas urbanas. CES: Coimbra, 2009 (p.
25-40)
NOTAS
Fotos: Solange Valladão. Centro antigo de Salvador, 2019.