A produção de subjetividade na gestão do patrimônio urbano na Salvador do século XXI
Texto e fotografia: Solange Valladão, doutoranda do Programa de
Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPAGAU/UFBA.
sgvalladao@gmail.com
Este
texto apresenta o esboço teórico-metodológico e o primeiro
exercício realizado para a pesquisa sobre: a produção de
subjetividade na gestão do patrimônio urbano na Salvador do século
XXI. Este tema insere-se nos objetos de estudo da linha de pesquisa
“Restauração, Conservação e Gestão dos Bens Patrimoniais” do
Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA,
com o intuito de contribuir para as pesquisas de natureza teórica e
crítica, sobre os processos de gestão político-social do
patrimônio histórico, nas dimensões: micro e macropolíticas;
imaterial e material.
Contextualização
A
partir do final século XX, a produção de subjetividade é
percebida nesta pesquisa como um fator central para a formulação de
desejos, discursos e ações, usados por diferentes grupos sociais,
envolvidos nas disputas pelo patrimônio urbano em todo mundo. Este
fenômeno foi observado inicialmente (entre 2015 e 22017), na
relação entre segregação social e as formas de fazer cidade e
urbanismo no Centro Histórico de Salvador. A subjetividade se
apresentou como elemento central no modo como indivíduos,
movimentos, instituições, etc., se organizavam segundo um princípio
de identidade; nela estava seu patrimônio perceptivo (visão,
audição, olfato, tato, etc), material e imaterial. O primeiro é
formado a partir da concretude da sua experiência de mundo e com as
questões que este lhes coloca; os demais atuam produzindo desejos
convocando-nos a entrar em disputa. A partir deste arranjo dinâmico,
os sujeitos pensam, sentem e tomam decisões para agir sobre si,
sobre seu grupo, sobre o espaço e no mundo (ROLNIK, 2017).
Somado
a isso entra a leitura dos momentos históricos onde a segregação
foi constituída desde a fundação desta cidade - além das
condições políticas, sociais e econômicas que a desenhava. A
produção de discursos e desejos, via produção e captura de
subjetividade, foi uma ferramenta importante para a consolidação e
aceitação de processos segregadores, sem que estes encontrassem uma
resistência efetiva. Mas esta resistência existiu, segue existindo
e se reconfigurando alguns fatos são marcos históricos: como a
abolição da Escravatura em 1888, a proclamação da República em
1889, a instauração da Ditadura em 1964 e a redemocratização do
país em 1988. Hoje surge um novo marco histórico,
onde as forças sociais estão em processo de reconfiguração,
mobilizadas pela disputa entre uma diversidade de projetos políticos
para a sociedade.
Na
questão do patrimônio urbano o que mudou no final do século XX, a
partir da redemocratização do país com a nova Constituição de
1988 e a criação do Estatuto da Cidade em 2001, foi a maior
organização dos movimentos sociais em torno de pautas urbanas mais
específicas relacionadas a habitação e transporte, por exemplo,
estimulados politicamente pelos instrumentos de gestão democrática
da cidade, previstos no Capítulo IV, artigos nº 43, 44 e 45 do
Estatuto da Cidade (BRASIL, 2012, p. 26). Nos anos 1990 os movimentos
sociais entram na pauta do patrimônio quando as áreas centrais de
valor histórico, ocupadas por antigos moradores, pessoas de baixa
renda, comércio e serviços de caráter popular e informal,
começaram a ser objeto de intervenções urbanas em larga escala.
Segundo o Ministério das Cidades, no material didático do curso
“Reabilitação Urbana com foco em Áreas Centrais” (que realizei
em 2016), a pressão sobre estas áreas surge como:
[…] parte de uma estratégia que tem no capital privado, especialmente nos setores econômicos de ponta, o principal investidor a ser atraído, sob o chamariz da renovação e modernização da infraestrutura de uma região bem localizada. Há ainda toda uma sedução construída em torno de um cenário carregado de significados culturais, capaz de construir uma imagem da cidade ao mesmo tempo contemporânea e histórica, com forte apelo de um status criado em torno do lugar e seus símbolos. (CAPACIDADES, 2016, p. 30)
Esta
estratégia e seus desdobramentos já foram estudados por diversos
autores dentro do patrimônio e do urbanismo. Entre estes, cito
algumas obras que tomei como referência: “A alegoria do
patrimônio” de Francoise Choy (1992); “Urbanismo em fim de
linha e Outros Estudos sobre o Colapso da Modernização
Arquitetônica” de Otília Arantes e “A cidade do pensamento
único: desmanchando consensos” com texto desta autora, Ermínia
Maricato e Carlos Veiner (1998 e 2000 respectivamente); “A
cidade-atração a norma de preservação de áreas centrais no
Brasil dos anos 1990” (2017) de Marcia Sant’Anna, que aborda as
normas de preservação brasileira nos anos 90, através das
intervenções de requalificação nas cidades Salvador, Rio de
Janeiro e São Paulo, e dos programas implementados pelo Governo
Federal.
Nos
processos de segregação na área tombada do centro histórico de
Salvador, a captura e produção de subjetividade se apresentou em
questões distintas como:
- a mobilização de resistências de antigos moradores, contra os projetos e programas de turistificação, produzidos e implantados sem debate com as pessoas que ocupam e usam as áreas afetadas. Por sua vez, estas têm afirmado suas identidades raciais, culturais e sua relação com o cotidiano do lugar, como construtores de parte fundamental deste patrimônio, exigindo seu reconhecimento.
- na forma como os empreendimentos turísticos se apresentam capturando imaginários - individual e coletivos - presentes no desejo de renovação, requalificação, desenvolvimento econômico (mais empregos, em regra) em frases como: “O resgate do período áureo de Salvador”1, e outras expressas na imprensa e na publicidade (do setor público e privado), ganhando ressonância entre a população como algo de senso comum.
Cada
novo ciclo político-econômico trabalha a seu modo essa relação,
renomeando, editando velhas fórmulas ou trazendo como novo o que é
feito fora do país ou em cidades mais desenvolvidas, de acordo com o
modelo desejado de exploração do patrimônio urbano. Em geral este
ciclos têm em comum a recriação do conceito de “decadência”
quando há uma mudança de perfil social para o popular e informal;
não tratando do abandono dessas áreas pelo grupo político-social
que a constituiu, atraído pelos lucros dos processos de expansão
urbana da cidade e de valorização social de novas áreas (como
aconteceu, por exemplo, no início do século XIX com a valorização
dos os bairros da Barra e Rio vermelho em razão da abertura da av
Sete de Setembro e na década de 1970 com a construção do Centro
Administrativo da Bahia – CAB, na av. Paralela).
São
exemplos deste período no centro histórico de Salvador:
- Movimentos sociais: Artífices da Ladeira da Conceição (em 2014) como a associação de grupos e movimentos de resistência em uma entidade única de diálogo com instituições e com o governo, chamada “Articulação dos Movimentos e Comunidades do Centro Antigo de Salvador” onde participam: Associação Amigos de Gegê dos Moradores da Gamboa de Baixo, Movimento Nosso Bairro É 2 de Julho, MSTB – Movimento Sem Teto da Bahia, Comunidade da Ladeira da Preguiça, Artífices da Ladeira da Conceição da Praia e Coletivo da Vila Coração de Maria; alinhados a esta entidade estão também a AMACH – Associação de Moradores e Amigos do Centro Histórico e com AMACHA – Associação de Moradores da Chácara Santo Antônio, entre outros (VALLADÃO, 2017, p. 51);
- Setor privado: o Projeto Nova Rua Chile, da Fera Empreendimentos, corresponde a um conjunto de investimentos previstos pela empresa, que inclui o Fera Palace Hotel inaugurado em março de 2017 - reforma do antigo Palace Hotel, prédio de 1934; o Hotel Fasano inaugurado em dezembro 2018 – também reforma de um prédio antico, no caso Jornal A Tarde, inaugurado em 1930 e onde também funcionou o Hotel Wagner.
- Setor público: prevalece ações pautadas na concessão de incentivos fiscais através de projetos de lei como o Programa de Incentivo ao Desenvolvimento Sustentável e Integrado – PIDI (lei nº 8.962 de 30/12/2015) e o Programa Revitalizar (lei nº 9.215 de 20/05/2017). O Programa Salvador 360, da atual prefeitura, já incorpora estes instrumentos legais no 8º Eixo que trata das ações para o Centro Histórico. Isso implica que estas são atreladas a leis com facilidades fiscais voltadas para investidores, o que dá pouca margem para a participação dos moradores e comerciantes, de renda média e baixa que caracterizam a ocupação e o uso desta área da cidade.
Caracterização
Considerando
a produção de subjetividade como chave de leitura das disputas por
ocupação, uso e transformação do patrimônio urbano nas em áreas
centrais de valor histórico, pressupõe-se que a partir do final de
século XX, as disputas entre diferentes grupos sociais, pelo
patrimônio urbano, têm na produção de subjetividade um elemento
central para a formulação de desejos, discursos e ações que
desenham, reorganizam e definem seus termos na macro e micropolítica.
Neste período em Salvador, programas e projetos dos poderes público
e privado, e ações dos movimentos sociais, conscientemente ou não,
disputaram diferentes usos da subjetividade como forma de prevalecer
suas pautas. Compreendeu-se que atuar sobre a produção de desejos,
tornava estas forças capazes de intervirem nos fluxos, tanto de
manutenção do status quo do poder hegemônico, como de constituição
e articulação de resistências contra hegemônicas.
A
exploração da noção de subjetividade como categoria dentro
patrimônio urbano, ilumina este jogo de forças a partir do
cotidiano desta produção, apreendida pelo método etnográfico como
instrumento para cartografar os fenômenos envolvidos nas disputas
entre os projetos de turistificação/elitização desta área e o
amadurecimento das resistências; disputas estas hoje, dadas em torno
da retomada dos empreendimentos como hotéis de luxo, e da busca por
capilaridade institucional e popular dos movimentos de resistência.
No
campo dos estudos sobre a gestão patrimônio urbano, ainda não há
um enfoque de natureza teórica e crítica sobre a importância da
produção de subjetividade como elemento definidor de determinadas
percepções do patrimônio urbano (material e imaterial) e como
elemento catalisador da relação de forças que orientam a forma
como este é disputado a partir do final do século XX.
Segundo
professor (UFRJ) e antropólogo José Gonçalves, um aprofundamento
analítico da noção de patrimônio pode ser útil para “iluminar
determinados aspectos da vida social e cultural”. Tratando o
patrimônio como uma categoria de pensamento dentro de seus estudos e
pesquisas, Gonçalves destaca o papel fundamental que este desempenha
“no processo de formação de subjetividades individuais e
coletivas”. Segundo ele:
[…] não há patrimônio que não seja ao mesmo tempo condição e efeito de determinadas modalidades de autoconsciência individual e coletiva. Quero dizer que entre patrimônio e as formas de autoconsciência individual ou coletiva existe uma relação orgânica e interna e não apenas uma relação externa e emblemática. Em outras palavras, não há subjetividade sem alguma forma de patrimônio. (GONÇALVES, 2005, p. 27)
Disputas, patrimônio, áreas centrais e subjetividade
Ainda
segundo o professor José Gonçalves, “não há subjetividade sem
alguma forma de patrimônio”, sendo assim, estas noções se
aproximam contribuindo para a abordagem que esta pesquisa pretende
fazer.. Uma das chaves desta aproximação é a noção de
“dispositivo de patrimônio” elaborada pela professora
(PPGAU/UFBA) Marcia Sant’Anna, em seu livro “Da cidade-monumento
à cidade-documento: a norma de preservação das áreas urbanas no
Brasil” (2015). Ela relata que, o conceito de “patrimônio
nacional”, foi invetado na Revolução Francesa, no final do século
XVIII, como um modo encontrado “pelos burgueses para induzir à
turba [multidão] um comportamento menos destrutivo [aos objetos que
representavam a cultura burguesa] e justificar a intervenção do
Estado” (SANT’ANNA, 2014, p. 32), criava-se ali um dispositivo
que “conheceria grande desenvolvimento e aplicabilidade estratégica
no futuro.”
Um
exemplo como este dispositivo atua, pode ser visto quando, em 2015,
no Centro Histórico de Salvador - CHS, houve a demolição de
imóveis nas Ladeiras da Montanha e da Conceição, depois de
deslizamentos provocados pelas fortes chuvas daquele ano. Ali
surgiram diversos discursos vindos: do governo; das instituições;
dos moradores; de trabalhadores, frequentadores e comerciantes; da
imprensa; dos movimentos sociais; dos empresários; dos setores
culturais, por fim, da população da cidade. Todos disputando sua
noção patrimônio histórico. Cada discurso teve na palavra
patrimônio e nos elementos que o representam (seja material ou
imaterial), um atributo de poder que foi usado e moldado para nomear,
justificar, argumentar e explicar uma diversidade de enunciados, onde
este mesmo atributo pôde servir, inclusive, para objetivos
antagônicos (FOUCAULT, 2014).
Neste
contexto, avançavam as estratégias políticas, sociais e econômicas
que moldavam diferentes discursos sobre o patrimônio: de um lado
como vetor de desenvolvimento econômico; de outro lado como modo de
resistência que questiona a apropriação do patrimônio urbano por
empreendimentos privados com estímulo do poder público, via
incentivos fiscais. Assim, pode-se compreender que as aplicações do
dispositivo de patrimônio como um “saber-poder” (SANT’ANNA,
2014, p. 37) oferecem pistas sobre as subjetividades produzidas e
capturadas nos discursos, como também dar concretude a estas
aplicações no espaço.
Produção de subjetividade
A
produção e a captura da subjetividade atravessa a formulação de
desejos, discursos e ações, que são praticadas por diferentes
grupos sociais e sujeitos, envolvidos nas disputas por patrimônio
urbano em todo mundo, a partir do final século XX. O estudo da
produção de subjetividade relacionado às disputas sobre patrimônio
urbano é conduz a outros conceitos incorporados neste projeto de
pesquisa, especialmente o de dispositivo de patrimônio - aqui
considerado como expressão prática do primeiro.
A
noção de subjetividade não é algo novo no campo do urbanismo. As
linhas de pesquisa que implicam os processos políticos relacionados
a questão urbana como, por exemplo, as que tratam do direito à
cidade, já compreendem a produção de subjetividade como um fator
presente, mesmo que este não corresponda a uma imagem, uma palavra,
um gesto; no entanto, ela está ali nos afetando (ROLNIK, 2017).
Outro aspecto importante desta noção para o patrimônio urbano é
relacionado a questão da identidade. Segundo a professora (PUC-SP)
e psicanalista Suely Rolnk “a ideia de identidade só funciona
quando a subjetividade está reduzida ao sujeito. Quando este entende
sua subjetividade como ‘o mundo’ e não um mundo entre outros,
dentro e fora do sujeito” (ROLNIK, 2017).
Guattari,
em seu livro “Caosmose: um novo paradigma estético”, trabalhou a
formulação de um conceito expandido de subjetividade, para que esta
ultrapassasse a “oposição clássica entre sujeito individual e
sociedade”. A partir deste trabalho, compreende-se que a
subjetividade “não conhece nenhuma instância dominante de
determinação que guie as outras instâncias [experiências] segundo
uma casualidade única” (GUATTARI, 1992, p. 11). Não estando esta
determinação apenas no sujeito e nem na sociedade, mas em interação
entre estes, então pode-se dizer que:
[…] a subjetividade não se situa no campo individual, seu campo é o de todos os processos de produção social e material […] está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos nas suas existências particulares.
Em
meus estudos, observei que na produção de discursos, se encontra a
expressão da subjetividade “assumida e vivida” pelos sujeitos e
pela sociedade, nas dinâmicas de sua interação, sem ter entre
estes, ou a partir destes uma instância de determinação. Esta
produção é essencial também no uso do dispositivo de patrimônio.
Os discursos dão forma dentro das disputas, a imaginários
distintos, mas nem sempre opostos, que circulam entre as aspirações
desenhadas pela condição social na qual têm origem ou a qual
adere. Estas condições sociais e suas expressões no espaço vivido
(LEFEBVRE, 2006), tornam a produção de subjetividade como
elemento-chave, que introduzo nesta pesquisa.
Dispositivo de patrimônio
Na
cidade de Salvador e em outras que possuam patrimônio urbano, quando
são lançados programas, projetos e empreendimentos; quando ocorrem
fatos disruptivos como tragédias, ou quando nada acontece e surge o
imóvel desocupado e a ruína, estas condições, por paradoxais que
sejam, geram apropriações e discursos moldados pelos interesses
envolvidos nas disputas que cada uma delas aciona. Cada discurso terá
no patrimônio e nos elementos que o representam (material e
imaterial), um atributo de poder. É nesse contexto se aplica aqui a
noção de dispositivo de patrimônio, desenvolvido pela professora
(UFBA) e arquiteta Marcia Sant’Anna. Segunda ela:
[…] no mundo ocidental, a preservação é feita mediante a aplicação de um dispositivo que entroniza os objetos como patrimônio. Chamaremos esse dispositivo, de dispositivo de patrimônio. Abordar o patrimônio histórico deste modo significa dizer que ele é permanentemente produzido por um conjunto de discursos (saberes) e visibilidades (organizações concretas) alinhados ou chamados a funcionar em conjunto, em consonância com um objetivo estratégico. (SANT’ANNA, 2014, p. 36)
O
dispositivo de patrimônio oferece uma nova perspectiva sobre a
instrumentalização do patrimônio urbano. No final do século XX,
vemos um novo ciclo de investimentos sobre o centro de Salvador,
prioritariamente voltados para a economia do turismo. Cada qual, com
suas diferentes alianças com o poder econômico, procura exercer
distintos papéis sobre as representações simbólicas da cidade.
Essas apropriações não consideram o cotidiano como fator que
constrói a cultura; mas esta, uma vez feita marca do lugar
(identidade), será manipulada pelo marketing político e empresarial
como mercadoria de luxo. Paradoxalmente, essa mesma apropriação de
marca (identidade), é usada e manipulada pelas pessoas pobres na
ginga do cotidiano, nas disputas com o poder político e econômico.
Diagrama das práticas do poder no espaço
Em
uma entrevista que falava sobre Deleuze, Suely Rolnik disse que as
sensações diante dos textos deste autor, dependem “muito mais da
postura desde a qual o leitor exerce seu próprio pensamento.”
(ROLNIK, 2014, p. 1). E esta postura seria definida por uma posição
mais “ética, estética e política”, do que “metodológica ou
epistemológica”. Ainda segundo Rolnik, essas três posições, no
contexto de uma postura do pensar, é ética “porque o que a define
[...] é o rigor com que escutamos as diferenças que se fazem em nós
e afirmamos o devir a partir dessas diferenças”, é estética
“porque não se trata de dominar um campo de saber já dado, mas
sim de criar um campo no pensamento que seja a encarnação das
diferenças que nos inquietam, fazendo do pensamento uma obra de
arte” e é política “porque se trata de uma luta contra as
forças em nós que obstruem as nascentes do devir: forças reativas,
forças reacionárias.” (ROLNIK, 2014, p. 1-2)
A
Análise de Redes Sociais (ARS) é uma ferramenta oriunda dos métodos
de investigação de campo, da pesquisa etnográfica na Antropologia,
considerada como estratégia metodológica e analítica que demonstra
as sínteses realizadas na pesquisa. Segundo Pujadas (2010,
p.111-112), o uso dessa ferramenta parte de dois pressupostos que
orientam sua elaboração: “as instituições não cobrem todo o
campo de relações sociais dentro de uma determinada estrutura
social; os indivíduos conservam espaços de autonomia nas relações
interpessoais que desenvolvem ao longo de sua vida”. Outra
característica é que a base a partir da qual se elabora a ARS, se
expressa como diagrama onde são postos, ligados, associados e
classificados em categorias, os elementos que compõem a Rede Social
em estudo.
A
cartografia-diagrama, é onde o espaço virtual das relações
sociais é mapeado no que tange sua potência de máquina abstrata,
expondo as forças que constituem o jogo de poderes a partir das
possibilidades apresentadas pelos sujeitos sociais implicados e pelas
análises realizadas. O objetivo analítico da pesquisa é descrever
em que consiste, como funciona e como se articulam os indivíduos,
inseridos ou não, institucionalmente, em torno de uma questão-chave
(ou palavra-chave). Esta é colocada no centro da rede como
disparador das ramificações que o diagrama assumirá a cada nova
inserção, que a guiará para novas associações.
A
análise é extraída através da configuração que o diagrama
apresenta. A desenho diagramático em curso, articula ferramentas
tecnopolíticas e etnográficas em uma cartografia-diagrama dos jogos
de poder e de forças. Os primeiros resultados apontam para: o jogo
do poder; hierarquias que se enunciam nas disputas; a mediação dos
meios de comunicação dentro das disputas; o nível de engajamento
aferido pelas ações ou omissões dos movimentos e sujeitos sociais;
os projetos pautados pelo Estado e Município sem consulta pública,
mas com veiculação na mídia.
O
desenho da rede social tem como base dois momentos: a definição de
um filtro de notícias usando ferramentas digitais simples como
Google Alerts2
sobre uma determinada palavra-chave que expresse um elemento central
ou objeto da pesquisa. Por exemplo, pode-se criar um alerta que
contenha palavras-chave, como “Comércio” ou “Ladeira da
Conceição da Praia”, que são áreas dentro do Centro Histórico
de Salvador onde, desde o início deste século têm surgido de forma
recorrente nos discursos que enunciam projetos que colocam a disputa
pelo patrimônio urbano, material e imaterial; segundo no desenho da
cartografia-diagrama que apresenta graficamente as relações entre
os sujeitos implicados.
Para
desenho do diagrama de redes sociais foi usada a ferramenta FreeMind,
um programa gratuito, de código aberto (open source) para criação
de mapas metais. O diagrama pode ser distinguido entre Redes Sociais
Totais (uma primeira aproximação geral) e Redes Parciais (um
detalhamento de um dos “nós” da Rede Total) e, dentro dessas
redes, os graus de conectividade e graus de intensidade das relações
entre os sujeitos. Cada sujeito é identificado segundo atributos
como: amigos, vizinhos, membros de uma instituição, colegas de
trabalho, grau de parentesco (PUJADAS, 2010).
Dentro
da formulação analítica a Rede por ser organizada em torno de
instituições sociais (família, compadres, amigos), instituições
políticas/econômicas (partidos, organizações, associações,
fundações), a partir das quais são analisadas as relações de
poder e hierarquia. Na pesquisa são analisados também os discursos
enunciados pelos sujeitos que se apresentam para compor a
cartografia-diagrama a partir da coleção de notícias.
A
partir da montagem processual de um diagrama em torno de notícias
sobre as intervenções mais recentes propostas para o Centro
Histórico da cidade, já pôde ser identificado um jogo de poder
caracterizado, a priori, por quatro momentos: primeiro a sondagem
(notícias na mídia de um determinado projeto); segundo a reação
(de setores da sociedade, ligados ao tema do projeto); terceiro a
discussão (debate indireto onde a mídia aparece como mediadora); e
quarto a realização de encontros fechados com alguns atores
institucionais para discussão do projeto em questão, forjando um
debate simbólico através da mídia sem acionar a comunidade local
das áreas afetadas. No decorrer desse jogo foi possível analisar:
as hierarquias de poderes interinstitucionais; a atuação das mídias
como disparador e mediador de um debate forjado; o papel da mídia na
aferição de adesão e/ou rejeição aos projetos pautados pelo
estado-capital.
O
momento seguinte (que se aguarda) seria o de debate com a sociedade
dos projetos de interesse público que estão sendo propostos. Desde
modo, a cartografia-diagrama em processo, não encerra e nem remete a
um conteúdo específico e fechado. Sua expressão dá lugar a outras
formulações de uma ideia, uma política, uma disputa, uma
articulação ou uma realidade por vir.
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1
Frase extraída da página da Fera Empreendimentos, se referindo a
reforma do Palace Hotel realizada pela mesma. Disponível
em:<http://www.ferainvestimentos.com.br/o-que-fazemos/trasnformacao/>.
Acesso em: 08/10/2018.
2
Google Alerts é um serviço do Google que retorna resultados de uma
pesquisa à caixa de e-mails do usuário, sempre que for encontrada
nova citação de um termo pré-determinado. Fonte: Wikipedia.
Google Alerts,
https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Google_Alerts&oldid=41637837.