A produção de subjetividade na gestão do patrimônio urbano na Salvador do século XXI

Texto e fotografia: Solange Valladão, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPAGAU/UFBA. sgvalladao@gmail.com
Este texto apresenta o esboço teórico-metodológico e o primeiro exercício realizado para a pesquisa sobre: a produção de subjetividade na gestão do patrimônio urbano na Salvador do século XXI. Este tema insere-se nos objetos de estudo da linha de pesquisa “Restauração, Conservação e Gestão dos Bens Patrimoniais” do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo - PPGAU/UFBA, com o intuito de contribuir para as pesquisas de natureza teórica e crítica, sobre os processos de gestão político-social do patrimônio histórico, nas dimensões: micro e macropolíticas; imaterial e material.

Contextualização

A partir do final século XX, a produção de subjetividade é percebida nesta pesquisa como um fator central para a formulação de desejos, discursos e ações, usados por diferentes grupos sociais, envolvidos nas disputas pelo patrimônio urbano em todo mundo. Este fenômeno foi observado inicialmente (entre 2015 e 22017), na relação entre segregação social e as formas de fazer cidade e urbanismo no Centro Histórico de Salvador. A subjetividade se apresentou como elemento central no modo como indivíduos, movimentos, instituições, etc., se organizavam segundo um princípio de identidade; nela estava seu patrimônio perceptivo (visão, audição, olfato, tato, etc), material e imaterial. O primeiro é formado a partir da concretude da sua experiência de mundo e com as questões que este lhes coloca; os demais atuam produzindo desejos convocando-nos a entrar em disputa. A partir deste arranjo dinâmico, os sujeitos pensam, sentem e tomam decisões para agir sobre si, sobre seu grupo, sobre o espaço e no mundo (ROLNIK, 2017).
Somado a isso entra a leitura dos momentos históricos onde a segregação foi constituída desde a fundação desta cidade - além das condições políticas, sociais e econômicas que a desenhava. A produção de discursos e desejos, via produção e captura de subjetividade, foi uma ferramenta importante para a consolidação e aceitação de processos segregadores, sem que estes encontrassem uma resistência efetiva. Mas esta resistência existiu, segue existindo e se reconfigurando alguns fatos são marcos históricos: como a abolição da Escravatura em 1888, a proclamação da República em 1889, a instauração da Ditadura em 1964 e a redemocratização do país em 1988. Hoje surge um novo marco histórico, onde as forças sociais estão em processo de reconfiguração, mobilizadas pela disputa entre uma diversidade de projetos políticos para a sociedade.
Na questão do patrimônio urbano o que mudou no final do século XX, a partir da redemocratização do país com a nova Constituição de 1988 e a criação do Estatuto da Cidade em 2001, foi a maior organização dos movimentos sociais em torno de pautas urbanas mais específicas relacionadas a habitação e transporte, por exemplo, estimulados politicamente pelos instrumentos de gestão democrática da cidade, previstos no Capítulo IV, artigos nº 43, 44 e 45 do Estatuto da Cidade (BRASIL, 2012, p. 26). Nos anos 1990 os movimentos sociais entram na pauta do patrimônio quando as áreas centrais de valor histórico, ocupadas por antigos moradores, pessoas de baixa renda, comércio e serviços de caráter popular e informal, começaram a ser objeto de intervenções urbanas em larga escala. Segundo o Ministério das Cidades, no material didático do curso “Reabilitação Urbana com foco em Áreas Centrais” (que realizei em 2016), a pressão sobre estas áreas surge como:
[…] parte de uma estratégia que tem no capital privado, especialmente nos setores econômicos de ponta, o principal investidor a ser atraído, sob o chamariz da renovação e modernização da infraestrutura de uma região bem localizada. Há ainda toda uma sedução construída em torno de um cenário carregado de significados culturais, capaz de construir uma imagem da cidade ao mesmo tempo contemporânea e histórica, com forte apelo de um status criado em torno do lugar e seus símbolos. (CAPACIDADES, 2016, p. 30)
Esta estratégia e seus desdobramentos já foram estudados por diversos autores dentro do patrimônio e do urbanismo. Entre estes, cito algumas obras que tomei como referência: “A alegoria do patrimônio” de Francoise Choy (1992); “Urbanismo em fim de linha e Outros Estudos sobre o Colapso da Modernização Arquitetônica” de Otília Arantes e “A cidade do pensamento único: desmanchando consensos” com texto desta autora, Ermínia Maricato e Carlos Veiner (1998 e 2000 respectivamente); “A cidade-atração a norma de preservação de áreas centrais no Brasil dos anos 1990” (2017) de Marcia Sant’Anna, que aborda as normas de preservação brasileira nos anos 90, através das intervenções de requalificação nas cidades Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, e dos programas implementados pelo Governo Federal.
Nos processos de segregação na área tombada do centro histórico de Salvador, a captura e produção de subjetividade se apresentou em questões distintas como:
  • a mobilização de resistências de antigos moradores, contra os projetos e programas de turistificação, produzidos e implantados sem debate com as pessoas que ocupam e usam as áreas afetadas. Por sua vez, estas têm afirmado suas identidades raciais, culturais e sua relação com o cotidiano do lugar, como construtores de parte fundamental deste patrimônio, exigindo seu reconhecimento.
  • na forma como os empreendimentos turísticos se apresentam capturando imaginários - individual e coletivos - presentes no desejo de renovação, requalificação, desenvolvimento econômico (mais empregos, em regra) em frases como: “O resgate do período áureo de Salvador”1, e outras expressas na imprensa e na publicidade (do setor público e privado), ganhando ressonância entre a população como algo de senso comum.
Cada novo ciclo político-econômico trabalha a seu modo essa relação, renomeando, editando velhas fórmulas ou trazendo como novo o que é feito fora do país ou em cidades mais desenvolvidas, de acordo com o modelo desejado de exploração do patrimônio urbano. Em geral este ciclos têm em comum a recriação do conceito de “decadência” quando há uma mudança de perfil social para o popular e informal; não tratando do abandono dessas áreas pelo grupo político-social que a constituiu, atraído pelos lucros dos processos de expansão urbana da cidade e de valorização social de novas áreas (como aconteceu, por exemplo, no início do século XIX com a valorização dos os bairros da Barra e Rio vermelho em razão da abertura da av Sete de Setembro e na década de 1970 com a construção do Centro Administrativo da Bahia – CAB, na av. Paralela).
São exemplos deste período no centro histórico de Salvador:
  • Movimentos sociais: Artífices da Ladeira da Conceição (em 2014) como a associação de grupos e movimentos de resistência em uma entidade única de diálogo com instituições e com o governo, chamada “Articulação dos Movimentos e Comunidades do Centro Antigo de Salvador” onde participam: Associação Amigos de Gegê dos Moradores da Gamboa de Baixo, Movimento Nosso Bairro É 2 de Julho, MSTB – Movimento Sem Teto da Bahia, Comunidade da Ladeira da Preguiça, Artífices da Ladeira da Conceição da Praia e Coletivo da Vila Coração de Maria; alinhados a esta entidade estão também a AMACH – Associação de Moradores e Amigos do Centro Histórico e com AMACHA – Associação de Moradores da Chácara Santo Antônio, entre outros (VALLADÃO, 2017, p. 51);
  • Setor privado: o Projeto Nova Rua Chile, da Fera Empreendimentos, corresponde a um conjunto de investimentos previstos pela empresa, que inclui o Fera Palace Hotel inaugurado em março de 2017 - reforma do antigo Palace Hotel, prédio de 1934; o Hotel Fasano inaugurado em dezembro 2018 – também reforma de um prédio antico, no caso Jornal A Tarde, inaugurado em 1930 e onde também funcionou o Hotel Wagner.
  • Setor público: prevalece ações pautadas na concessão de incentivos fiscais através de projetos de lei como o Programa de Incentivo ao Desenvolvimento Sustentável e Integrado – PIDI (lei nº 8.962 de 30/12/2015) e o Programa Revitalizar (lei nº 9.215 de 20/05/2017). O Programa Salvador 360, da atual prefeitura, já incorpora estes instrumentos legais no 8º Eixo que trata das ações para o Centro Histórico. Isso implica que estas são atreladas a leis com facilidades fiscais voltadas para investidores, o que dá pouca margem para a participação dos moradores e comerciantes, de renda média e baixa que caracterizam a ocupação e o uso desta área da cidade.

Caracterização

Considerando a produção de subjetividade como chave de leitura das disputas por ocupação, uso e transformação do patrimônio urbano nas em áreas centrais de valor histórico, pressupõe-se que a partir do final de século XX, as disputas entre diferentes grupos sociais, pelo patrimônio urbano, têm na produção de subjetividade um elemento central para a formulação de desejos, discursos e ações que desenham, reorganizam e definem seus termos na macro e micropolítica. Neste período em Salvador, programas e projetos dos poderes público e privado, e ações dos movimentos sociais, conscientemente ou não, disputaram diferentes usos da subjetividade como forma de prevalecer suas pautas. Compreendeu-se que atuar sobre a produção de desejos, tornava estas forças capazes de intervirem nos fluxos, tanto de manutenção do status quo do poder hegemônico, como de constituição e articulação de resistências contra hegemônicas.
A exploração da noção de subjetividade como categoria dentro patrimônio urbano, ilumina este jogo de forças a partir do cotidiano desta produção, apreendida pelo método etnográfico como instrumento para cartografar os fenômenos envolvidos nas disputas entre os projetos de turistificação/elitização desta área e o amadurecimento das resistências; disputas estas hoje, dadas em torno da retomada dos empreendimentos como hotéis de luxo, e da busca por capilaridade institucional e popular dos movimentos de resistência.
No campo dos estudos sobre a gestão patrimônio urbano, ainda não há um enfoque de natureza teórica e crítica sobre a importância da produção de subjetividade como elemento definidor de determinadas percepções do patrimônio urbano (material e imaterial) e como elemento catalisador da relação de forças que orientam a forma como este é disputado a partir do final do século XX.
Segundo professor (UFRJ) e antropólogo José Gonçalves, um aprofundamento analítico da noção de patrimônio pode ser útil para “iluminar determinados aspectos da vida social e cultural”. Tratando o patrimônio como uma categoria de pensamento dentro de seus estudos e pesquisas, Gonçalves destaca o papel fundamental que este desempenha “no processo de formação de subjetividades individuais e coletivas”. Segundo ele:
[…] não há patrimônio que não seja ao mesmo tempo condição e efeito de determinadas modalidades de autoconsciência individual e coletiva. Quero dizer que entre patrimônio e as formas de autoconsciência individual ou coletiva existe uma relação orgânica e interna e não apenas uma relação externa e emblemática. Em outras palavras, não há subjetividade sem alguma forma de patrimônio. (GONÇALVES, 2005, p. 27)

Disputas, patrimônio, áreas centrais e subjetividade

Ainda segundo o professor José Gonçalves, “não há subjetividade sem alguma forma de patrimônio”, sendo assim, estas noções se aproximam contribuindo para a abordagem que esta pesquisa pretende fazer.. Uma das chaves desta aproximação é a noção de “dispositivo de patrimônio” elaborada pela professora (PPGAU/UFBA) Marcia Sant’Anna, em seu livro “Da cidade-monumento à cidade-documento: a norma de preservação das áreas urbanas no Brasil” (2015). Ela relata que, o conceito de “patrimônio nacional”, foi invetado na Revolução Francesa, no final do século XVIII, como um modo encontrado “pelos burgueses para induzir à turba [multidão] um comportamento menos destrutivo [aos objetos que representavam a cultura burguesa] e justificar a intervenção do Estado” (SANT’ANNA, 2014, p. 32), criava-se ali um dispositivo que “conheceria grande desenvolvimento e aplicabilidade estratégica no futuro.”
Um exemplo como este dispositivo atua, pode ser visto quando, em 2015, no Centro Histórico de Salvador - CHS, houve a demolição de imóveis nas Ladeiras da Montanha e da Conceição, depois de deslizamentos provocados pelas fortes chuvas daquele ano. Ali surgiram diversos discursos vindos: do governo; das instituições; dos moradores; de trabalhadores, frequentadores e comerciantes; da imprensa; dos movimentos sociais; dos empresários; dos setores culturais, por fim, da população da cidade. Todos disputando sua noção patrimônio histórico. Cada discurso teve na palavra patrimônio e nos elementos que o representam (seja material ou imaterial), um atributo de poder que foi usado e moldado para nomear, justificar, argumentar e explicar uma diversidade de enunciados, onde este mesmo atributo pôde servir, inclusive, para objetivos antagônicos (FOUCAULT, 2014).
Neste contexto, avançavam as estratégias políticas, sociais e econômicas que moldavam diferentes discursos sobre o patrimônio: de um lado como vetor de desenvolvimento econômico; de outro lado como modo de resistência que questiona a apropriação do patrimônio urbano por empreendimentos privados com estímulo do poder público, via incentivos fiscais. Assim, pode-se compreender que as aplicações do dispositivo de patrimônio como um “saber-poder” (SANT’ANNA, 2014, p. 37) oferecem pistas sobre as subjetividades produzidas e capturadas nos discursos, como também dar concretude a estas aplicações no espaço.

Produção de subjetividade

A produção e a captura da subjetividade atravessa a formulação de desejos, discursos e ações, que são praticadas por diferentes grupos sociais e sujeitos, envolvidos nas disputas por patrimônio urbano em todo mundo, a partir do final século XX. O estudo da produção de subjetividade relacionado às disputas sobre patrimônio urbano é conduz a outros conceitos incorporados neste projeto de pesquisa, especialmente o de dispositivo de patrimônio - aqui considerado como expressão prática do primeiro.
A noção de subjetividade não é algo novo no campo do urbanismo. As linhas de pesquisa que implicam os processos políticos relacionados a questão urbana como, por exemplo, as que tratam do direito à cidade, já compreendem a produção de subjetividade como um fator presente, mesmo que este não corresponda a uma imagem, uma palavra, um gesto; no entanto, ela está ali nos afetando (ROLNIK, 2017). Outro aspecto importante desta noção para o patrimônio urbano é relacionado a questão da identidade. Segundo a professora (PUC-SP) e psicanalista Suely Rolnk “a ideia de identidade só funciona quando a subjetividade está reduzida ao sujeito. Quando este entende sua subjetividade como ‘o mundo’ e não um mundo entre outros, dentro e fora do sujeito” (ROLNIK, 2017).
Guattari, em seu livro “Caosmose: um novo paradigma estético”, trabalhou a formulação de um conceito expandido de subjetividade, para que esta ultrapassasse a “oposição clássica entre sujeito individual e sociedade”. A partir deste trabalho, compreende-se que a subjetividade “não conhece nenhuma instância dominante de determinação que guie as outras instâncias [experiências] segundo uma casualidade única” (GUATTARI, 1992, p. 11). Não estando esta determinação apenas no sujeito e nem na sociedade, mas em interação entre estes, então pode-se dizer que:
[…] a subjetividade não se situa no campo individual, seu campo é o de todos os processos de produção social e material […] está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos nas suas existências particulares.
Em meus estudos, observei que na produção de discursos, se encontra a expressão da subjetividade “assumida e vivida” pelos sujeitos e pela sociedade, nas dinâmicas de sua interação, sem ter entre estes, ou a partir destes uma instância de determinação. Esta produção é essencial também no uso do dispositivo de patrimônio. Os discursos dão forma dentro das disputas, a imaginários distintos, mas nem sempre opostos, que circulam entre as aspirações desenhadas pela condição social na qual têm origem ou a qual adere. Estas condições sociais e suas expressões no espaço vivido (LEFEBVRE, 2006), tornam a produção de subjetividade como elemento-chave, que introduzo nesta pesquisa.

Dispositivo de patrimônio

Na cidade de Salvador e em outras que possuam patrimônio urbano, quando são lançados programas, projetos e empreendimentos; quando ocorrem fatos disruptivos como tragédias, ou quando nada acontece e surge o imóvel desocupado e a ruína, estas condições, por paradoxais que sejam, geram apropriações e discursos moldados pelos interesses envolvidos nas disputas que cada uma delas aciona. Cada discurso terá no patrimônio e nos elementos que o representam (material e imaterial), um atributo de poder. É nesse contexto se aplica aqui a noção de dispositivo de patrimônio, desenvolvido pela professora (UFBA) e arquiteta Marcia Sant’Anna. Segunda ela:
[…] no mundo ocidental, a preservação é feita mediante a aplicação de um dispositivo que entroniza os objetos como patrimônio. Chamaremos esse dispositivo, de dispositivo de patrimônio. Abordar o patrimônio histórico deste modo significa dizer que ele é permanentemente produzido por um conjunto de discursos (saberes) e visibilidades (organizações concretas) alinhados ou chamados a funcionar em conjunto, em consonância com um objetivo estratégico. (SANT’ANNA, 2014, p. 36)
O dispositivo de patrimônio oferece uma nova perspectiva sobre a instrumentalização do patrimônio urbano. No final do século XX, vemos um novo ciclo de investimentos sobre o centro de Salvador, prioritariamente voltados para a economia do turismo. Cada qual, com suas diferentes alianças com o poder econômico, procura exercer distintos papéis sobre as representações simbólicas da cidade. Essas apropriações não consideram o cotidiano como fator que constrói a cultura; mas esta, uma vez feita marca do lugar (identidade), será manipulada pelo marketing político e empresarial como mercadoria de luxo. Paradoxalmente, essa mesma apropriação de marca (identidade), é usada e manipulada pelas pessoas pobres na ginga do cotidiano, nas disputas com o poder político e econômico.

Diagrama das práticas do poder no espaço

Em uma entrevista que falava sobre Deleuze, Suely Rolnik disse que as sensações diante dos textos deste autor, dependem “muito mais da postura desde a qual o leitor exerce seu próprio pensamento.” (ROLNIK, 2014, p. 1). E esta postura seria definida por uma posição mais “ética, estética e política”, do que “metodológica ou epistemológica”. Ainda segundo Rolnik, essas três posições, no contexto de uma postura do pensar, é ética “porque o que a define [...] é o rigor com que escutamos as diferenças que se fazem em nós e afirmamos o devir a partir dessas diferenças”, é estética “porque não se trata de dominar um campo de saber já dado, mas sim de criar um campo no pensamento que seja a encarnação das diferenças que nos inquietam, fazendo do pensamento uma obra de arte” e é política “porque se trata de uma luta contra as forças em nós que obstruem as nascentes do devir: forças reativas, forças reacionárias.” (ROLNIK, 2014, p. 1-2)
A Análise de Redes Sociais (ARS) é uma ferramenta oriunda dos métodos de investigação de campo, da pesquisa etnográfica na Antropologia, considerada como estratégia metodológica e analítica que demonstra as sínteses realizadas na pesquisa. Segundo Pujadas (2010, p.111-112), o uso dessa ferramenta parte de dois pressupostos que orientam sua elaboração: “as instituições não cobrem todo o campo de relações sociais dentro de uma determinada estrutura social; os indivíduos conservam espaços de autonomia nas relações interpessoais que desenvolvem ao longo de sua vida”. Outra característica é que a base a partir da qual se elabora a ARS, se expressa como diagrama onde são postos, ligados, associados e classificados em categorias, os elementos que compõem a Rede Social em estudo.
A cartografia-diagrama, é onde o espaço virtual das relações sociais é mapeado no que tange sua potência de máquina abstrata, expondo as forças que constituem o jogo de poderes a partir das possibilidades apresentadas pelos sujeitos sociais implicados e pelas análises realizadas. O objetivo analítico da pesquisa é descrever em que consiste, como funciona e como se articulam os indivíduos, inseridos ou não, institucionalmente, em torno de uma questão-chave (ou palavra-chave). Esta é colocada no centro da rede como disparador das ramificações que o diagrama assumirá a cada nova inserção, que a guiará para novas associações.
A análise é extraída através da configuração que o diagrama apresenta. A desenho diagramático em curso, articula ferramentas tecnopolíticas e etnográficas em uma cartografia-diagrama dos jogos de poder e de forças. Os primeiros resultados apontam para: o jogo do poder; hierarquias que se enunciam nas disputas; a mediação dos meios de comunicação dentro das disputas; o nível de engajamento aferido pelas ações ou omissões dos movimentos e sujeitos sociais; os projetos pautados pelo Estado e Município sem consulta pública, mas com veiculação na mídia.
O desenho da rede social tem como base dois momentos: a definição de um filtro de notícias usando ferramentas digitais simples como Google Alerts2 sobre uma determinada palavra-chave que expresse um elemento central ou objeto da pesquisa. Por exemplo, pode-se criar um alerta que contenha palavras-chave, como “Comércio” ou “Ladeira da Conceição da Praia”, que são áreas dentro do Centro Histórico de Salvador onde, desde o início deste século têm surgido de forma recorrente nos discursos que enunciam projetos que colocam a disputa pelo patrimônio urbano, material e imaterial; segundo no desenho da cartografia-diagrama que apresenta graficamente as relações entre os sujeitos implicados.
Para desenho do diagrama de redes sociais foi usada a ferramenta FreeMind, um programa gratuito, de código aberto (open source) para criação de mapas metais. O diagrama pode ser distinguido entre Redes Sociais Totais (uma primeira aproximação geral) e Redes Parciais (um detalhamento de um dos “nós” da Rede Total) e, dentro dessas redes, os graus de conectividade e graus de intensidade das relações entre os sujeitos. Cada sujeito é identificado segundo atributos como: amigos, vizinhos, membros de uma instituição, colegas de trabalho, grau de parentesco (PUJADAS, 2010).
Dentro da formulação analítica a Rede por ser organizada em torno de instituições sociais (família, compadres, amigos), instituições políticas/econômicas (partidos, organizações, associações, fundações), a partir das quais são analisadas as relações de poder e hierarquia. Na pesquisa são analisados também os discursos enunciados pelos sujeitos que se apresentam para compor a cartografia-diagrama a partir da coleção de notícias.
A partir da montagem processual de um diagrama em torno de notícias sobre as intervenções mais recentes propostas para o Centro Histórico da cidade, já pôde ser identificado um jogo de poder caracterizado, a priori, por quatro momentos: primeiro a sondagem (notícias na mídia de um determinado projeto); segundo a reação (de setores da sociedade, ligados ao tema do projeto); terceiro a discussão (debate indireto onde a mídia aparece como mediadora); e quarto a realização de encontros fechados com alguns atores institucionais para discussão do projeto em questão, forjando um debate simbólico através da mídia sem acionar a comunidade local das áreas afetadas. No decorrer desse jogo foi possível analisar: as hierarquias de poderes interinstitucionais; a atuação das mídias como disparador e mediador de um debate forjado; o papel da mídia na aferição de adesão e/ou rejeição aos projetos pautados pelo estado-capital.
O momento seguinte (que se aguarda) seria o de debate com a sociedade dos projetos de interesse público que estão sendo propostos. Desde modo, a cartografia-diagrama em processo, não encerra e nem remete a um conteúdo específico e fechado. Sua expressão dá lugar a outras formulações de uma ideia, uma política, uma disputa, uma articulação ou uma realidade por vir.

REFERÊNCIAS

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ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000.
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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 24ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
GONÇALVES, José Reginaldo S. Patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, R.; CHAGAS, M. (Org.). Memória e patrimônio – ensaios. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009, p. 25-33.
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GUATTARI, Felix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
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GERHARDT, T. e SILVEIRA, D. (org.). Métodos de pesquisa. Universidade Aberta do Brasil – UAB/UFRGS. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2009.
LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000). Primeira versão: início – fev.2006. Disponível em:
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PUJADAS, Juan. La etnografia contemporánea. In: PUJADAS, J. (coord). Etnografia. Barcelona: Editorial UOC, 2010. p. 54-66
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ROLNIK, Suely. Ninguém é deleuziano. Entrevista publicada em: Territórios da Filosofia, postada em: 23/06/2014. Disponível em: <https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2014/06/23/ninguem-e-deleuziano-suely-rolnik/>
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Vídeos

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ROLNIK, Suely (entrevista). Projeto Narciso no Espelho do Século XXI.: Subjetividade contemporânea e a crise da identidade moderna. São Paulo, 2017. Vídeo (1h 28min 03s), som, cor. Disponível em: <https://youtu.be/GjsRiQB_5DY>. Acesso em: 06/08/2018.
1 Frase extraída da página da Fera Empreendimentos, se referindo a reforma do Palace Hotel realizada pela mesma. Disponível em:<http://www.ferainvestimentos.com.br/o-que-fazemos/trasnformacao/>. Acesso em: 08/10/2018.
2 Google Alerts é um serviço do Google que retorna resultados de uma pesquisa à caixa de e-mails do usuário, sempre que for encontrada nova citação de um termo pré-determinado. Fonte: Wikipedia. Google Alerts, https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Google_Alerts&oldid=41637837.

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