COMO É QUE NÃO APRENDE?

Autora: Solange Valladão
Arquiteta urbanista, doutoranda em Arquitetura, Conservação e Restauro


Escrevi este texto em 2012 para a primeira atividade do curso de especialização em Artes Visuais - Cultura e Criação, que fiz no SENAC. A atividade consistia em contar sua história de aprendizagem até chegar ao curso.

Relendo hoje,  me surpreendi com a forma como escrevi isso. Por certo porque era um texto para ser lido por poucos. Não era para divulgação fora do ambiente do curso. Passados seis anos de que o escrevi, chego a me espantar como a minha vida mudou - não digo aqui se para melhorar ou pior! A sensação é que se passou muito mais tempo do que esses seis anos. Depois dali, não deixei mais de seguir estudando e buscando continuar esse rico intercâmbio, onde aprendendo muito sobre mim mesma aprendendo outras coisas. Depois deste curso, fiz a especialização em fotografia e o mestrado em urbanismo.

E essa história não vai ter fim. Vai para o doutorado e sabe mais aonde - até uma segunda graduação é possivel, ou não. Muitos cursos bons na modalidade EAD e gratuitos, estão disponíveis em plataformas de instituções reconhecidas (Lúmina da UFRGS, Saberes do Senado Federal, etc). No intervalo entre uma coisa e outra - como agora - é com eles que sigo me atualizando, fora os eventos das áreas que tenho interesse e que vou sempre que possível.

Então compartilho esse texto aqui porque acredito que a troca de experiências assim, deste e de outros tipos, desmistificam, desnudam e simplificam as coisas da vida. Aprendi isso lendo sobre experiências diversas de outras pessoa que tiveram essa generosidade que tento retribuir. No caso da aprendizagem, é de entender que é coisa pra vida toda mesmo, como dizem por ai sábias pessoas. É algo para fazer sempre, em qualquer tempo.

***

Como é que não aprende?
Salvador, agosto de 2012.

Nasci no banheiro do apartamento de minha vó. Cai lá, na verdade. Minha mãe disse que apenas se abaixou um pouco de cócoras porque sentiu uma coisa entranha. Não foi dor, diz sempre ela ao contar esse história. Então sem dor para minha mãe, nasci. Acho que lá no chãozinho frio do banheiro muitas coisas se passaram, acho que lá nasceram também muitas impressões instintivas das coisas, das pessoas e do viver, que seriam para sempre parte de minha vida. Aprendi a resistir até chegar o médico e certificar-se de que, bom, enfim a coisinha ali estava viva e bem. E a casadinha resistir sem causar dor vem ficando presente na minha vida em diversos momentos. Ser, sem impor, entender meu tempo de nascer e nascer várias vezes sem muito aviso.

Passados 5 anos percebi que meu corpo veio com borracha e que se torcia dando quase um nó. Os amigos da família diziam “essa menina vai ser contorcionista”. Mas vendo na TV uma apresentação de ginástica olímpica, disse a minha mãe que queiria fazer aquilo. Mas não tinha escola. Minha mãe tentou, mas onde tinha aula, ela não podia pagar. Aprendi que não  ter dinheiro atrapalha de ser ginasta, mas que podia ser ginasta em casa... e tome acrobacia no sofá.

Uma vez entendi que era entranho dormi no escuro e acordar com o sol. Queria entender como isso acontecia, de onde vinha o sol. Fingi dormi para depois ficar sentada na janela brincando e esperando para desvendar o mistério, assim vi fascinada, o sol nascer.

Adorava desenhar, escrever e lia as coisas repetindo de ouvido. Minha tia entendeu que por isso eu era inteligente e deveria estudar mais cedo. Dai ela me colocou numa banca para eu adiantar um ano na escola. Mas eu achava chato ter que ser inteligente, eu só queria brincar de desenhar, escrever e ler... A professora me passava sempre ditado. Então eureca! Comecei a escrever as palavras em letras tão pequenas que ela não conseguia ler para corrigir e assim fui escrevendo tudo até minha tia desistir da banca. Mas, aos 7 anos, ela não desistiu de me colocar para pular uma série... ai eu fui para recuperação e perdi a prova. Matemática a matéria que mais gostava. Assim voltei para a série normal para minha idade. Ali talvez, tenha entendido que não estava em mim, me forçar a ser o que não sou, por uma causa tão pequena como a vaidade de minha tia em ter uma sobrinha “gênio”. 10 anos depois apareceria o meio termo disso, falta pouco para chegar lá.

Meu avó era desenhista, pintava e fotografava. Meu pai era desenhista e fotografava também. Aos 14 anos achei que deveria fazer curso técnico de química pois ainda gostava de matemática, e em química tinha as melhores notas. Mas a falta de vaga neste curso, me jogou para o plano B. Entrei para o curso de desenho arquitetônico. Terceira geração de desenhista da família. Ai percebi uma vantagem imensa com relação aos meus colegas: tinha  todo o material de desenho em casa. Agora eu poderia aprender algumas coisas antes dos outros achando que sim, agora eu queria, melhor dizendo: eu precisava!

Meu pai disse que canhota não desenha com normógrafo pois ele foi feito apenas para pessoas destras. Normógrafo é aquele kit de aranha com caneta de tinta e réguas com letras e que serve para escrever nas pranchas de desenho. É coisa já tão antiga e indescritível, que para quem não conhece só mostrando uma foto. Então, escondida do meu pai pegava a régua e a aranha, montava sem a caneta e treinava escrever com a mão direita, palavras invisíveis  deslizando a régua com letras para lá e para cá ao lado da famosa régua “T” que apoiava esta. Assim na primeira prova de normógrafo tirei a incrível nota 10 e virei orgulho do professor de desenho!

Aos 17 passei no vestibular sem estudar nada, nem fazer cursinho - voltei a ser o gênio da familia. De quebra, realizei o sonho do meu pai, meu avô e do meu professor de desenho: entrei para Faculdade de Arquitetura, sem saber o que exatamente isso significava, pois matemática e coisas exatas assim, ainda eram o meu forte.

Na faculdade, logo no primeiro semestre logo dois choques: eu não sabia nada de matemática. Este era o resultado de: escola pública + curso profissionalizante + não ter feito cursinho pré-vestibular; também descobri que, para todo mundo, eu ainda era criança. E olha que eu já estagiava em uma construtora quando entrei na faculdade e ganhava meu dinheiro com alguns extras de desenhos também. Mas 1,55 m, 39 kg, óculos e um eterno macacão bege com vários bolsos, não me tiravam desse título de criança, que me perseguiu até a formatura. Admito: e um pouco depois também.

A Faculdade trouxe um mundo para mim. Um mundo tão grande que quase não saí dele, foram 8,5 anos para me formar, mas isso é outra história.  Enfim, era tudo um mundo, quase uma galáxia que me jogava em movimentos complementares e contrários, de expansão e síntese de todas as percepções, sentimentos; sobre meus sonhos, desejos e aspirações. Lia muito e a leitura de um assunto levava a outros e outros, indo e vindo numa rede de curiosidade e fascinação. Assim comecei a fazer muitas disciplinas optativas na área de teatro, comunicação, arte e fui deixando as disciplinas de arquitetura para depois.

Na Faculdade me encantei com o planejamento urbano e com a arquitetura moderna. Le Corbusier e Walter Gropius eram meus favoritos. Juntando Gropius, que era um arquiteto alemão, e o fascínio pelo planejamento urbano na Alemanha do pós Segunda Guerra, comecei a estudar alemão. E posso dizer que a biblioteca da escola de alemão quase me tirou da arquitetura e mudou minha vida. Lá descobri os livros sobre cinema e uma coisa que não conhecia: biografia de cineastas. Um parêntese para dizer que a essa altura eu já era uma leitora clandestina dos romances de Dostoievski. Isso foi graças a um colega das longas viagens de ônibus entre a Ribeira, onde eu morava e a Federação, onde eu estudava, que pegava escondido da tia dele os volumes da coleção completa... infelizmente ela descobri o “empréstimo” no final do terceiro, dos quatro volumes das obras completas, que eu viria a comprar e terminar de ler, quase 20 anos depois, acreditem: um sonho realizado.

Voltando a biblioteca da escola de alemão, escolhi meu primeiro livro para tomar emprestado, apenas pela impressão que me causou o título: um livro autobiográfico chamado “Meu último suspiro”. Assim conhecia Luis Buñel, o cinema da década de 1920 e as conexões da arte como forma de expressão de uma época, como forma de reflexão humana e política.  A coisa ficou grave quando na sequência peguei outra autobiografia de outro cineasta: Seguei Eisenstein. Dai já fui direto para a matrícula no curso de russo que, infelizmente, não conclui por que a escola fechou por falta de alunos. Só tinha eu e mais um colega que ainda queria continuar, o resto desistiu, uma pena.

A essa altura já preciso dizer que reuni a família para comunicar que ia largar arquitetura para estudar cinema em Cuba.

Agora volta tudo: virei uma dedicada estudante de arquitetura do último semestre com 7 matérias, estágio, trabalho de conclusão, 38 kilos e ainda 1,55 m, óculos, mas agora de longas saias costuradas por mim e blusas de malha cortadas por mim também.

Assim há 17 anos sou arquiteta mergulhada em várias formas de atuação, sempre fascinada pelo planejamento urbano, mas agora como ferramenta de atuação na cidadania. Paralelo a isso, nesses anos todos, entrava na minha vida a informatização das ferramentas de trabalho. Adotei-a como uma segunda matemática, que ainda é um lado meu que precisa de atenção e que se lança para tudo quando é novidade numa curiosidade autodidata; mais atrapalhada que pragmática e saltitante como criança com cada brinquedo novo; seja este um super PC, netbook, notebok ou um celular novo. Mais ainda quando são novos programas e ferramentas. Adoro, por exemplo, descobrir a versão livre de programas pagos e falo de livre mesmo e não de pirata. E viva a internet para tudo isso ficar mais intenso. Poderia trabalhar testando programas novos!

Em 2011, fiz uma coisa ainda estranha, louca e inacreditável para mim: tirei um ano sabático e mergulhei na fotografia experimentando o digital e o analógico, sendo este mais  impulsionado quando descobri a Lomografia e uma loja de filmes vencidos da Rua Chile. Assim fui experimentando e percebendo o quanto esse universo do pensar e fazer artístico me prendia horas a fio sem cansar e o quanto já não me achava mais na arquitetura.

Levei meu ano sabático até onde foi possível sustentá-lo, fiz muitos sonhos de projetos de exposições e continuo fazendo, mesmo sem grana. Sigo um pouco trabalhando sob as bênçãos do título de arquiteta para me manter, mas com o corpo e a alma de uma artista que ainda está buscando a sua expressão, entre as expressões curiosas que tem dentro de si.

Antes que eu me esqueça: o normógrafo

Fonte: https://www.levyleiloeiro.com.br/imagens/img_m/270/284278.jpg
 



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