LIBERDADE ARTÍSTICA
Solange Valladão
texto
O assunto que provocou este texto, já tem algum tempo. Ele foi escrito em resposta a um e-mail que recebi, ainda no calor dos debates surgidos em setembro de 2017, sobre a performance La Bête do artista Wagner Schwartz no Museu de Arte de São Paulo. Apesar de já terem esfriados os debates sobre este caso específico, o debate sobre a liberdade de expressão, seque em outras produções e manifestações artísticas. Assim, de dentro da minha atuação e interesse no campo artístico, quis deixar marcado como percebo hoje essa questão.
Para publicar o texto aqui, mantive o caráter informal, mas fiz pequenas revisões e atualizações sobre algumas das reflexões que tinha feito na época. Assim atualizo e pondero melhor sobre o assunto, para que o texto seja mais útil a um debate mais amplo. Segue o texto:
Amiga, tô gostando que faz debate.
Te digo sinceramente que, de uma forma geral, eu não gosto de performances artísticas. Poucas de fato me sensibilizaram. Mas isso sou eu. A maioria das vezes, o artista demanda que a gente entenda o sentido do trabalho, normalmente de uma construção complexa, no tempo geralmente curto da performance, o que acho que é pedir demais. Por isso, para mim, fica um vazio de ver e não entender na hora e nem de reverberar depois.
Fico especialmente desinteressada quando a coisa soa apelativa, o que não me parece o caso dessa. Mesmo assim, o pelado pra mim, não é em grande parte apelativo só banal mesmo, pois está em todo lugar. Basta não ser hipócrita pra admitir. Sem ter visto pessoalmente a performance, pelas diversas fotos que vi, me parece realmente que não é nem de longe o caso.
Acho a performance em questão, uma coisa comum. Li sobre a performance e vi que o artista construiu um sentido que é relevante, mas talvez, mesmo para quem a assistiu, isso só fique claro quando se lê sobre o que ela significa. Talvez esse sentido se perca na performance o que me parece provável, mas não por isso daria margem e distorções tão grandes pelo fato de ela ser feita com um homem nu - será porque esse homem é atraente enquanto imagem artística masculina? As distorções são os nossos preconceitos ao nu e os nossos tabus sobre atração e desejo.
De acordo com o que li sobre o sentido da performance, ele poderia faze-la vestido com alguma coisa sem perder a construção poética da mesma. Mas isso é o que eu acho. Sabe-se lá de que camadas de preconceitos submersos vem esse meu achar, Deus me livre!
Artistas experientes, como é ele, normalmente tem outra forma de relação com o nu e o uso da expressão artística com o corpo, que a gente que não sabe estar pelado na frente do povo não entende bem. Mas essa é a nossa construção cultural, cuja moral vem da formação religiosa cristã extremamente opressiva.
O que fazer? Descolonizar o processo de colonização e todo aparato de repressão moral que veio com ele, pode levar muito mais do que os 500 anos que se levou para construi-lo neste pais, e mais ainda de onde ele veio. Pior: esse processo segue em construção, mesmo em meio a esforços heroicos e persistentes para desconstruí-lo, praticados no dia à dia por artistas e pessoas em busca de emancipação do viver a vida; poder, se quiser, sair pelado e desencanado como os povos indígenas. Isso talvez seja um dos esforços desse artista. Então, se assim for, para além da performance que ele criou, como bom artista que é, seu trabalho como um todo se desdobra para pensar outras questões que nos são deveras incômodas. E isso é bom, mesmo que para alguns seja também muito difícil. É isso, a vida não é fácil, especialmente quando criamos problemas onde estes não deveriam existir.
Mas veja que isso da polêmica sobre a performance está aparecendo só agora - [novembro 2017] essa performance não é nova o artista já a fez em vários lugares sem reboliço. A polêmica chegou por conta da recente retomada de uma radicalização moralista - essa sim perigosíssima, imoral e indecente! - caçadora de liberdades de expressão, que esconde uma hipocrisia profunda e é pautada pelo sensacionalismo como ferramenta para favorecer interesses políticos e de poder, totalmente alheios a questões como educação, cultura e etc. e que só desejam nos manter no atraso e na miséria...
Mas o que poderíamos perguntar se tivéssemos um debate sério é: Qual é o problema se as crianças que assistiram a performance, estavam com os pais ou um outro adulto responsável? E que estes estavam assistindo com elas o trabalho do artista e deixaram que as crianças fossem até ele. Qual o problema disso? Além de nenhum, porque não pensar, por exemplo, que estes são pais, adultos e crianças acostumados a se verem e conviverem sem roupa, o que é normal em muitas famílias que não cultivam esse moralismo hipócrita sobre o nu?
Todos os lugares em que o artista se apresentou são espaços públicos abertos para a arte, e com reconhecida seriedade com relação aos trabalhos que acolhe. O próprio artista tem um currículo que não deixa dúvidas quanto a qualidade e seriedade de sua dedicação à arte.
O que o povo religioso, conservador e inflamador dos ânimos alheios esquece na ânsia de distorcer as coisas, é que pedofilia não acontece nessas circunstâncias, acontece nas redes sociais nos lares e nos
templos religiosos, e que não são artistas e sim familiares, pastores e padres que estão entre a grande maioria dos casos de prática de pedofilia segundo as estatísticas.
Como diria o moço de um jornal: Vida que segue!
:)
Biografia do artista
https://www.wagnerschwartz.com/bio
Descrição da performance La Bête
https://www.wagnerschwartz.com/la-b-te
https://goo.gl/XQmf6W
Por falar em performances artísticas, uma que me arrebatou pela beleza, pela força expressiva e política: Arraste do artista Fernando Lopes.
Ver: [aqui também com um pouco da biografia do artista]